19 de abril de 2024

Alfredo Cunha, o livro de fotos duma quinta-feira de abril

«A professora mandou‑nos calar e estava a tentar sintonizar o rádio. A deter-minada altura recambiou‑nos a todos para casa. É tudo o que me lembro desse dia. Tinha 6 anos, estava na 1.ª classe, e pertenço à geração que, nas décadas seguintes, foi acusada de ter perdido o 25 de Abril. Só lá para as eleições de 1980, com uns sólidos 12 anos, é que estava politizado o suficiente para entrar na luta partidária, como era costume na época. Tinha perdido a festa.»
in Alfredo Cunha, 25 de Abril de 1974, quinta-feira (2023)

Luís Pedro Nunes confidencia no extrato em epígrafe ter 6 anos à data do Movimento dos Capitães que virou o país de pernas para o ar e guardar uma imagem muito estrita desse dia. Lembra-se da atitude insólita da professora primária e de ter sido recambiado para casa sem saber o porquê dessa folga inesperada. Por esse então, eu era um pouco mais crescidinho. Com 22 anos acabados de fazer, revejo muito bem tudo o que os meus olhos me permitiram presenciar e os restantes sentidos registar. Os ecos desses momentos chegam-me à memória como se fosse hoje, apesar de distar o número redondo de meio século. O que eu não tinha na altura era uma Kodak para fixar o evento e os Smartphones ainda teriam de esperar pelo virar do milénio para entrar em cena. Felizmente que Alfredo Cunha possuía os meios tecnológicos disponíveis na época para captar os instantes então vividos e revelá-los agora no livro de fotos 25 de Abril de 1974, quinta-feira (2023), publicado pela Tinta-da-China.

Dos cerca de 40 rolos com 30 fotogramas cada obtidos pelo jovem fotógrafo do Século naquelas 10 horas cruciais para o êxito do ação militar em curso, desse acervo de 2000 fotos logradas e algumas mais tiradas antes/depois do período charneira de 74-75, resultou uma copilação impressa de 434 páginas de 15,5x15,5cm, prefaciada pelo jornalista e comentador Luís Pedro Nunes, «A máquina do tempo» (5), seguido dos textos do investigador e conferencista Carlos de Matos Gomes, «Guerra à liberdade» (14), do repórter e radialista Adelino Gomes, «25 de Abril de 1974, quinta-feira» (110), e do professor e historiador Fernando Rosas, «Depois de abril» (266). O álbum conta ainda com o trabalho gráfico de Alexandre Farto / aka Vhils na capa-contracapa e divisórias referidas, bem como das Notas Biográficas sucintas dos atores envolvidos.

E como uma imagem vale mais do que mil palavras, necessitaríamos de vários volumes para exibir todas as histórias expostas em cada uma das fotos contidas nestas quatro centenas e picos de páginas profusamente ilustradas a branco e negro, as cores representativas do tudo e do nada. O melhor é mesmo deixar que cada uma delas fale por si e ouvir em silêncio aquilo que a imaginação tem para dizer-nos. Limitemo-nos a sintetizar o teor dos escritos que as acompanham o aporte revelado pela objetiva de Alfredo Cunha, o coordenador da obra. Dizer que, numa fase preparatória, Carlos de Matos Gomes se encarrou de contextualizar a questão colonial, situando-a entre uma fantasia e realidade goradas, quando a geração que foi atirada para a guerra se recusou a ser o bode expiatório do regime. Avançar com a visão de Adelino Gomes, ao situar o dia inicial do golpe a 10 quadros e várias cenas de capital importância para o sucesso do evento. Finalizar com a clarificação por Fernando Rosas das palavras-chave definidoras do statu quo então instaurado: revolução, guerra civil e pontos de rutura.

Os contributos pessoais compostos por cada um dos obreiros deste testemunho histórico dos 50 anos do 25 de Abril aí estão em forma de livro, postos à disposição de quem o queira abrir e viajar a seu bel-prazer no seu interior. O melhor dia das suas vidas e de muitos daqueles que nele participaram de corpo presente ou à distância do espaço e do tempo. Relembrar essa quinta-feira em que a liberdade saiu à rua e a encheu de cravos que chegaram até nós. Uns eram vermelhos da cor do amor e da paixão, outros brancos da cor da pureza e da paz. Usemo-los sem parcimónia agora e sempre, sem restrições, como símbolo duma conquista alcançada com tanto esforço e que a todo o custo queremos preservar.

15 de abril de 2024

Huîtres creuses ou plates au naturel

Huîtres & Muscadet

Não sou apreciador de marisco a que um modismo recente começou a apelidar de frutos do mar. Frescuras. Nessa indiferença, excetuo os mexilhões preparados à maneira flamenga, as amêijoas cozinhadas numa cataplana algarvia e umas ostras bretãs comidas ao natural, como aliás é prática comum em todo o hexágono francês. Se no primeiro caso referido as batatas fritas são imprescindíveis e no segundo a polpa de tomate maduro, a cebola  cortada às rodelas e as fatias de pão caseiro fazem um trio inseparável para degustar os bivalves, o terceiro contenta-se com muito pouco, bastando-lhe uma simples vinaigrette para realçar o fino sabor iodado vindo do mar.

Num piquenique na Quinta do Marim, seguido dum giro pelo percurso de interpretação da natureza e por uma visita ao moinho de maré ali existentes, ouvi dizer a um técnico daquele Centro de Educação Ambiental terem as ostras portuguesas da Ria Formosa sido levadas para os parc à huîtres de Cancale para substituir as bretãs que entretanto tinham sido dizimados por um vírus. O mais curioso é que as netas, bisnetas ou tetranetas portuguesas viriam mais tarde a repovoar os viveiros portugueses quando o problema se verificou também entre nós. Não sei até que ponto a veracidade da história, mas parece-me mesmo assim digna de ser lembrada.

Algarvias ou bretãs, as portugaises continuam a ser das mais cotadas pelo exigente palato gaulês. Aprendi a degustá-las comme il faut em amena camaradagem com as creuses e as plates oriundas da baía do Mont Saint-Michele e degustadas em boa companhia em Saint-Malo. Voltei a fazê-lo muitas outras vezes em meses com/sem -R-, regadas com um bom muscadet frapé. As modernas técnicas postas ao dispor da gourmandise sanaram todos os riscos de as saborear tanto na primavera-verão como no outono-inverno. Tal como disse Fernando Pessoa sobre a Coca-Cola, primeiro estranha-se, depois entranha-se. Assim elas nos caiam no prato ainda a cheirar a mar.

MUSCADET

10 de abril de 2024

Os pomos de ouro ou da discórdia

Lord Leighton, The Garden of the Hesperides (1892)

HELÉNICAS, LATINAS & LUSITANAS
maçãs laranjas tomates marmelos melões

Dizem os mitos dum tempo sem tempo, que os tempos com tempo transformaram em lendas, haver nas margens do rio Oceano, onde o Sol se põe, um horto pejado de pomos de ouro plantadas por Hera no Jardim das Hespérides, a morada das ninfas defendida por um dragão com corpo de serpente munido duma centena de cabeças vigilantes. Apesar da agrura da tarefa, Héracles logrou eliminar o feroz monstro guardião e apoderar-se do cobiçado fruto.  

Dizem as lendas antigas, que os ditos recentes reduziram a histórias dum diz que diz sem fim à vista, referirem-se esses pomos dourados a lídimas MAÇÃS de ouro de poderes divinos prodigiosos. Associá-los, v.g., a Éris, à deusa grega da Discórdia. Esta, despeitada por não ter sido convidada para o casamento de Peleu e Tétis, encarregou Páris de entregar um desses frutos à mais bela das deusas, ponto de partida para a sangrenta Guerra de Troia.

Dizem as histórias atuais, com que o imaginário coletivo transfigurou os mitos e lendas ancestrais sobreviventes à voragem do tempo, serem as LARANJAS dadas como as maçãs douradas existentes nesse paraíso perdido à beira-mar plantado. O grego moderno até aponta para o nosso país, ao designar o citrino por πορτοκάλι [portokáli], imitado por uma diversidade doutros idiomas, pese embora o facto do cultivo ser relativamente recente entre nós.

Dizem por que o contramito da laranja mítica lusitana esbarra com a hipótese rival italiana de converter as maçãs douradas helénicas em TOMATES (pomodoros). Pomo da Discórdia nascido na antiguidade clássica, que se designa em latim uma «maçã doce» por melimellu, derivado grego de μελίμηλον [melimelon], para nomear o MARMELO, identificado à data com os seios divinos de Vénus/Afrodite, a deusa escolhida por Páris como a mais bela do Olimpo.

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Mitos e contramitos à parte, as histórias da História dizem-nos que urge achar os tais pomos de ouro sem discórdias à mistura. Maçãs, laranjas, tomates, marmelos. Tanto faz. Dadores do metal sonante amoedado com que se compram os MELÕES, amarelos por dentro e multicores por fora. Suculentos, saborosos, nutritivos. A provarem por a+b que nem tudo o que luz é ouro é como maçãs de ouro em salvas de prata enchem o olho e pouco mais.

4 de abril de 2024

Lídia Jorge e o assobio do vento a zunir nos perfis das gruas com um silvo duro

«Gostava de ser manobrador de gruas encartado. Gostava de sair daqui, de ir para muito longe, com os três filhos e com a Milene. Sim, também percebo, gosta de gruas porque gosta de olhar de cima, gosta de manobrar pesos. Gosta de subir e de descer a correr. De chegar lá acima com o coração a bater. Gosta do risco quando o vento assobia nas gruas e elas podem virar. Gosta de subir acima mesmo quando elas podem virar e você pode morrer.»
Lídia Jorge, O vento assobiando nas gruas (2002)

Uma vintena de anos após a publicação dum dos mais emblemáticos romances de Lídia Jorge, voltei à companhia d'O vento assobiando nas gruas (2002), projeto há muito tempo apetecido e há outro tanto adiado. A notícia de estar para breve a estreia da versão filmada da obra por Jeanne Waltz, realizadora suíça estabelecida longa data entre nós, decidiu-me a pôr um ponto final nessa dilação inexplicável e sem sentidoAntecipei-me até ao lançamento da película a nível nacional. O confronto da história contada por escrito nas páginas dum livro e da projetada na tela duma sala de cinema ficou assim facilitada. Altura apropriada para traçar algumas notas rápidas de leitura antes que as luzes se apaguem e as imagens em movimento nos relatem os factos acontecidos com palavras ditas em vez de lidas.

A entidade descritiva abre o relato com a notícia da morte singular da matriarca dum poderoso clã familiar do sul do país. O corpo sem vida da avó Regina fora encontrado numa sexta-feira quente de verão junto à fábrica velha de conservas que lhe pertencia. Nesse 15 de agosto de 1994, o falecimento fora comunicado por dois agentes da Guarda Nacional Republicana à neta Milene, o único parente da vítima presente no local à data do óbito. Todos os seus tios e tias, primos e primas, achavam-se então a gozar um período de férias, a estudar ou a residir fora do país, cabendo-lhe assim a tarefa de resolver sozinha as disposições legais e práticas inerentes ao ocorrido, o que lhe conferirá desde aí o estatuto não só de figura central desse primeiro painel do retábulo textual, a «Cerimónia», como do par seguinte, «O Livro de Milene» intermédio e «O Vento Assobiando nas Gruas», em jeito de «Post-Scriptum».

O grande mistério do final trágico da anciã atravessa todo o texto, sem merecer em parte alguma o esclarecimento espectável do insólito. A omnisciência dos produtores de discurso nunca se manifesta na sua globalidade, para grande desespero tanto dos partícipes internos no tecido narrativo como dos recebedores externos do mesmo, que o fitam como meros leitores reais de factos fictícios. Ao revés, são equacionadas outras coordenadas estruturais definidoras da trama, plasmadas no cruzamento de duas sagas familiares distribuídas por três gerações seguidas. O percurso vital duns e doutros revelado em breves notas retrospetivas remonta a 1908, ano da ereção da unidade fabril que abonou a fortuna dos seus donos e serviria depois de lar aos imigrantes cabo-verdianos em terras portuguesas meridionais. O historial deste edifício e das várias vagas de operários, ocupantes e locatários que a encheram funciona como uma peça valiosa para pintar o cenário onde os dramas vividos ao seu redor se revelaram ao longo de grande parte do século passado.

Lidos os segmentos orgânicos formativos do todo efabulado, avulta no horizonte dos eventos trazidos à colação os amores pintados a claro/escuro da sobrinha oligofrénica dos omnipotentes senhores do local central do enredo e do irmão viúvo do cantor pop-folk de sucesso junto da comunidade crioula residente no país de acolhimentoUma variante atualizada do Romeu e Julieta shakespeariano a transferir os dramas vividos pelos Montecchios e Capuletos de Verona para os Leandros e Matas de Santa Maria de Valmares. Os enamorados romanescos mais recentes sobrevivem, todavia, à morte dos seus precursores italianos e contraem casamento com a anuência tácita dos respetivos grupos parentais. Uma muito azada castração secreta aplicada à jovem deficiente mental permitiu a sua ligação efetiva ao manobrador encartado de gruas, simulando assim uma abertura de espírito antirracista das figuras proeminentes da intriga sem correrem o risco indesejado de gerarem uma prol mista eurafricana oriunda de dois mundos socioculturais tão diferentes entre si.

29 de março de 2024

Foi há 50 anos e eu estava lá…

COLISEU DOS RECREIOS

I Encontro da Canção Portuguesa
(Lisboa, 29 de março de 1974)
José Barata Moura, Vitorino, José Jorge Letria, Manuel Freire, 
Fausto, José Afonso e Adriano Correia de Oliveira

Foi há 50 anos e eu estava lá. Estou a referir-me ao I Encontro da Canção Portuguesa, organizado pela Casa da Imprensa no Coliseu dos Recreios de Lisboa a 29 de março de 1974, a fim de entregar os Prémios da Imprensa referentes a 1973. Retive algumas memórias muito vivas que as gravações vindas dessa noite de sexta-feira me ajudaram a avivar. Nem é para menos. O malogrado Levantamento das Caldas da Rainha ocorrera apenas 13 dias antes e o vitorioso Movimento das Forças Armadas adviria 27 dias depois.

Recordo-me de ter ido devidamente equipado com o meu capote alentejano. Servia-me de indumentária obrigatória de inverno e era ótimo para me proteger do pontapé-nas-costas das exíguas bancadas de madeira da maior sala de espetáculos da capital, quiçá do país. À frente desses ecos musicais com meio século de vida, realço o coro constituído pelas cinco mil vozes que então entoaram a plenos pulmões e braço dado a Grândola vila morena, iniciado no recinto circense e continuado nas Portas de Santo Antão.

Ah! Lembro-me, outrossim, das meias-palavras ditas para justificar as palavras plenas omitidas nas cantigas interditadas por inteiro ou por partes rasuradas. É que o anfiteatro estava pejado de censores arregimentados ao poder totalitário instituído pelos esbirros da outra senhora e a sua violação seria logo freada à boa maneira em uso na época. Mais difícil seria calar o público sedento de as ouvir cantar e que passo a passo as iam repetindo em uníssono.

A menos de um ano de ter atingido a maioridade, então fixada nos 21, presenciei de corpo presente aos derradeiros estertores do regime derrubado pelos Capitães de Abril. Momento também adequado para vibrar com as cantigas, canções, cantos e contracantos do nosso amargo cancioneiro. Aplaudir o canto das baladas cantadas pelos trovadores permitidos em palco e lembrar à distância a presença de tantos outros há muito condenados a um exílio forçado.

CORO EM PALCO
Grândola, Vila Morena | Terra da fraternidade ||O povo é quem mais ordena | Dentro de ti, ó cidade...
José Afonso, Grândola, Vila Morena (1971)

21 de março de 2024

Maneirismos versificados em décima rima métrica por três vates laureados

PETRARCA - CAMÕES - QUEVEDO

MANEIRISMO
Forma de arte que se desenvolveu na Itália, depois na Europa, no século XVI, sob a influência dos grandes mestres da Renascença.
Les beaux esprits se rencontrent...
I. Francesco Petrarca
     (1304-1374)

Pace non trovo e non ho da far guerra 

e temo, e spero; e ardo e sono un ghiaccio;
e volo sopra 'l cielo, e giaccio in terra;
e nulla stringo, e tutto il mondo abbraccio.

Tal m'ha in pregion, che non m'apre né sera,

né per suo mi ritèn né scioglie il laccio;
e non m'ancide Amore, e non mi sferra,
né mi vuol vivo, né mi trae d'impaccio.

Veggio senz'occhi, e non ho lingua, e grido;

e bramo di perir, e chieggio aita;
e ho in odio me stesso, e amo altrui.
 
Pascomi di dolor, piangendo rido;
egualmente mi spiace morte e vita:
in questo stato son, donna, per voi.
Canzoniere, 1470
II. Luís de Camões
      (1524-1580)

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo amor?

Rimas, 1595

III. Francisco de Quevedo

       (1580-1645)
Es hielo abrasador, es fuego helado, 
es herida que duele y no se siente, 
es un soñado bien, un mal presente,
es un breve descanso muy cansado.

Es un descuido que nos da cuidado,
un cobarde con nombre de valiente,
un andar solitario entre la gente,
un amar solamente ser amado.

Es una libertad encarcelada,
que dura hasta el postrero paroxismo;
enfermedad que crece si es curada.

Este es el niño Amor, este es su abismo.
¡Mirad cuál amistad tendrá con nada
el que en todo es contrario de sí mismo!
                                         Las tres Musas, 1670
NOTA
No Dia Mundial da Poesia, três poetas e um filósofo.