11 de setembro de 2014

As viagens do elefante

O Salomão das companhias de teatro Trigo Limpo (Portugal) e Flor de Jara (Espanha)
No tempo em que os Habsburgos governavam o mundo, Dom João III de Portugal ofereceu ao seu sobrinho Maximiliano da Áustria o elefante asiático Salomão. Depois de ter viajado nas caravelas lusitanas desde Goa até Lisboa e de ter permanecido algum tempo em Belém junto às águas calmas do Tejo, trocou os mares oceanos da Índia e do Atlântico pelos caminhos terrestres do Velho Mundo, com as rotas mediterrânicas de permeio. Atravessou a península hispânica e a italiana, transpôs as cordilheiras alpinas, fez-se às águas revoltas do Danúbio e entrou triunfalmente em Viena, coração do Sacro-Império Romano-Germânico. Corriam então os anos áureos de 1551-1552 e a época era pródiga em embaixadas exóticas. Dom Manuel I já brindara o papa Leão X com um outro paquiderme em 1514 e um rinoceronte em 1515-1516. O povo de Roma batizou-os de Annone e Ganda e a arte renascentista de Rafael e Dürer ofereceu-lhes a imortalidade. A moda inventada pelo Venturoso e estava lançada e bem viva ainda no reinado do Piedoso.

No início do terceiro milénio, em que as relações internacionais se tratavam de forma bem mais pragmática, José Saramago foi convi-dado por uma leitora de português da Universidade de Salzburgo a falar aos seus alunos. Quiseram os fados da cidade de Mozart que o já então Prémio Nobel da literatura jantasse no restaurante O Elefante. As figuras esculpidas em madeira e postas em fila na sala, como ornamento, despertaram a curiosidade do conferencista. Tratava-se, isso mesmo, do famoso viandante, aquele que a casa de Avis-Beja havia oferecido à casa de Áustria. A representação da Torre de Belém e doutros monumentos europeus enunciavam o percurso trilhado cinco centúrias atrás. O episódio é-nos contado pelo próprio escritor nas páginas que antecedem A viagem do elefante (2008), relação ficcional dos acontecimentos factuais composto em forma de romance. Porventura a mais divertida fábula que o autor dos ciclos da estátua e da pedra nos legou. E assim a história sucedida se transformou numa história inventada.

Contam as crónicas de agora que o elefante diplomata das crónicas de antanho está de regresso. Anda por aí de terra-em-terra a revisitar os locais ibéricos por onde deambulou até chegar ao seu destino. As histórias que a história conta são pouco precisas na identificação do trajeto exato seguido pela comitiva real. Um dia destes ainda o vemos surgir no horizonte a pisar o mesmo chão que nós pisamos. A liberdade poética da república das letras é bem capaz disso e muito mais. Saramago imaginou algumas etapas alternativas a seu belo prazer e deleite de todos nós. Sim, porque tal como reza O livro dos itinerários, «sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam». Nada impede as trupes itinerantes do Teatro Limpo e do Teatro Flor de Jara de terem o mesmo entendimento e de nos trazerem o elefante viajante até à nossa beira. Aproveitemos a visita e escutemos o que tem para nos dizer. Atentamente. É que no fim de tanto andar dum lado para o outro, terá muitas coisas nunca ditas para nos dizer…

2 comentários:

  1. Uma história tão bem contada que me encantou quando o li, aliás, como tantas outras de Saramago.

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  2. Este teu dom de descrever com palavras musicais um enredo é absolutamente admirável. Mesmo os livros de Saramago que não me agradaram tanto como os primeiros, pela tua pena desvendas o que é essencial na trama. Obrigada, Prof., por mais este belíssimo texto e por me lembrar que vale a pena ficar à espera de regressos, mesmo por outros caminhos!

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