15 de setembro de 2014

Pepetela, o sombreiro meridional do reino de Benguela


«E muitas vezes relembrava o episódio do grande chefe jaga cujo machado tinha um punho com ouro apanhado a sul de uma baía chamada da Torre ou das Vacas. Aí não havia brancos nem caçadores de escravos. Mas como chegar tão longe? | Há visões que entram na cabeça das pessoas, inadvertidamente. | Foi como a de uma baía larga de mato rasteiro e calmas águas, dominada por um morro com forma de chapéu largo, um sombreiro.»
Pepetela,  A sul. O sombreiro (2011)
O romance histórico está na moda. Parece que os demiurgos de tramas virtuais necessitam da ajuda de tramas reais para urdirem as raias ideais do verosímil. As personalidades de que a memória guardou um registo coletivo são revestidas com a máscara dramá-tica da fantasia e travestidas em personagens de faz-de-conta. Hipócritas lhes chamavam os gregos e lá teriam as suas razões. Pepetela pega numa mão cheia de vultos sonantes dos anais oficiais regidos pela musa Clio, põe-nos a contracenar com a outra mão repleta de figurantes anónimos de existência plausível e brinda-nos com um A sul. O sombreiro (2011), título algo obscuro para narrar partes da vida de Manuel Cerveira Pereira, o conquistador de Benguela, considerado desde a primeira frase como um filho de puta, o maior que alguma vez terá pisado aquele solo. Opiniões não se discutem e as palavras têm afinal o peso que lhes quisermos atribuir, convencionais todas elas e feitas à medida do ocasião.

Independentemente da opinião que os povos tenham erigido em torno da figura controversa do antigo capitão-general do Reino de Angola, dos seus antecessores e sucessores imediatos no cargo, heróis ou anti-heróis encartados, bem como doutros figurões mais que as crónicas seiscentistas tiveram o cuidado de preservar ou esquecer para sempre, convém averbar que o relato se ocupa de muitas outras minudências, ancoradas nos pretéritos tempos da Monarquia Dual ibérica luso-castelhana. Reinava então entre nós Filipe II de Portugal e III das Espanhas, soberano todo-poderoso do primeiro império global. O tal onde o sol nunca se punha. A ação decorre no litoral oceânico da então designada Etiópia Ocidental, situada entre o senhorio da Guiné e os reinos do Loango, Kongo e Ngola. Os eventos convocados estão focados nos sucessos protagonizados por africanos, brasileiros e europeus, por brancos, negros e mulatos, uma mescla de cores, etnias e convicções religiosas, todos eles encarniçados na criação das fronteiras duma nova ordem mundial, aquela que volvidas quatro centúrias chegou até aos nossos dias e ainda anda por aí a experimentar soluções definitivas sempre adiadas.

Os eventos evocados são exibidos a várias vozes, umas mais audíveis do que outras, como costuma acontecer numa acalorada cavaqueira de indivíduos ansiosos com palavras urgentes para dizer. Encontro de culturas e debate de ideias. A revelarem que nas relações humanas o bem e o mal são inseparáveis, como o verso e o reverso duma mesma moeda. Os modelos perfeitos pertencem ao universo da utopia. As tradições seculares fabricadas em espaços e tempos desencontrados é que erguem as balizas intransponíveis entre o certo e o errado. Paraísos e infernos terrestres sem lugar a purgatórios celestiais. Só quando as olhamos de perto nos damos conta que as intrigas, vinganças e violências são universais. O imperialismo, a escravatura e o racismo fazem parte da natureza do homem na sua totalidade. O hipotético descendente mestiço de Diogo Cão é tido como um negro com trajes de branco. O governador português é dado como um branco vestido de preto. O hábito lá vai fazendo o monge de quando em vez, a ponto dum nativo africano educado por colonos europeus ser visto como um branco de cor preta. As botas altas e um chapéu de abas largas ditaram-lhe a cor efetiva com que é esguardado pelos outros.

O tráfico de gentes, armas e minas atravessam o senhorio da conquista, navegação e comércio do triângulo atlântico do mar oceano português. E nestas travessias geoestratégicas entre três continentes, neste vai-e-vem incessantemente repetido, brotou, medrou e finou um império. Sobreviveu, todavia, uma língua comum, reinventada todos os dias há mais de oitocentos anos, quinhentos dos quais a nível planetário. Pepetela atualiza-a nesta crónica atual de eventos pretéritos, nesta ficção de feitos centrados numa cidade meridional com pretensão a reino, dominada por um morro com forma de chapéu largo ou sombreiro. Fá-lo à sua maneira. Com aquele aroma exótico e sabores desconhecidos, temperado com iguarias nunca vistas ou tocadas. Sinestesias verbais em forma de rimance. O novo mundo descoberto a sugerir percursos alternativos ao velho mundo a descobrir. Poesia em prosa. Origem, raiz e pátria deste nosso tagarelar quotidiano. Uma lufada de ar fresco espalhado pelos quatro cantos da terra.

1 comentário:

  1. Gostei imenso deste romance de Pepetela, cuja escrita me seduz pela frescura tropical que percorre as suas páginas. Gosto de romances históricos pois trazem-nos factos reais ignorados, esquecidos em arquivos cobertos de pó, e pelo reinventar de histórias sobre os feitos de homens bons e maus, numa mescla que o caos que rege a humanidade produz. Pepetela é um autor profícuo que domina a língua portuguesa, que apimenta com o léxico angolano numa simbiose sedutora. Escreve sobre temas variados, como os costumes do povo angolano e a guerra civil no seu país natal.
    "..a fronteira entre a verdade e a mentira é um caminho no deserto", escreve Pepetela no final de Mayombe. Concordo com ele, pelo que, na impossibilidade de conhecer a veracidade das relações humanas, mormente ao nível superior de raças, me fico pelo deslumbramento da leitura das suas histórias tão bem engendradas.

    ResponderEliminar