29 de abril de 2015

Do olhar ao reparar

Chris Blum, The Eye Is Never Full
«Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.»
José Saramago, Ensaio sobre a cegueira (1995)
Reciclagens
Vou esta tarde fazer uma reciclagem rápida à minha capacidade de observar o mundo. À noite regressarei a casa com um olho fechado e outro aberto. A esperança é a de restabelecer o equilíbrio perdido do olhar amanhã pela manhã.

A luz deixará de encontrar tantos obstáculos para se manifestar em pleno. As cores chegarão mais nítidas mas serão processadas do mesmo modo. Sem tirar nem pôr. O universo que me rodeia será visto à minha maneira. Exclusiva e intransmissível.

A reciclagem programada do olhar talvez promova a reciclagem esperada do reparar. Seguir a sentença registada no «Livro dos Conselhos», imaginado por Saramago no Ensaio sobre a cegueira, e passar a ser um rei com olhos numa terra de cegos.

25 de abril de 2015

Numa quinta-feira luminosa de abril...

Flashes dum dia de abril
[MAI Magazine, 25 de abril de 2014]
O DIA
Encontrei-me com o 25 de Abril de 74 em Lisboa. Como já disse al-gures, vivia então em Campo de Ourique. De vez em quando apa-nhava o 28, que me levava pachorrentamente até ao Calhariz. Descia mesmo em frente da pastelaria Bijou, a poucos passos da rua das Chagas, onde o então Instituto Comercial estava instalado e que eu frequentava mais ou menos a contragosto. Na manhã desse dia, levantei-me particularmente cedo e troquei o trajeto do elétrico pelas subidas e descidas da Domingos Sequeira, calçadas da Estrela e do Combro, pelo percurso pedestre menos acidentado da Sol ao Rato, Escola Politécnica, Príncipe Real e Rosa. Lá poupei assim os preciosos dez tostões do bilhete. Enquanto ia andando entregue aos meus pensamentos, estranhei o silêncio inusitado que ouvi ao longo de toda a travessia. Sobretudo no Bairro Alto, onde a vida de quem trabalha começa muito cedo. Pareceu-me escutar um ou outro cochicho segredado aqui ou além. Atribuiu-o à humidade que se fazia sentir nessa quinta-feira fria duma primavera ainda tímida.

Cheguei cerca das oito horas ao edifício bizantino de traça ortodoxa, onde em tempos funcionara a embaixada russa dos czares. A algazarra era indescritível. Junto à escadaria monumental ladeada por dois lampiões de bronze, deparei-me com um velho estandarte esfarrapado a exibir a dignidade resgatada dum apogeu passado. Tratava-se da bandeira da Associação Académica que tinha vivido os últimos anos na clandestinidade. Fui arrastado para o bar localizado na cave. Em cima duma mesa, um colega esbracejava e dava vivas a um MFA misterioso. Como música de fundo, uma rádio transmitia em alto som uma marcha militar. O caos tinha invadido o pacato ICL. No meio da barafunda, destacou-se uma voz a sair das ondas hertzianas da telefonia com fios. Daqui Movimento das Forças Armadas. A sigla gritada passara a ter algum significado. A repetição constante da palavra revolução ajudou a decifrar todos os enigmas com que me confrontara desde que saíra para a rua. Era altura de ver a história a acontecer ao vivo.

Andei pelas praças da cidade das muitas colinas. Camões, Terreiro do Paço, Rossio. Percorri as ruas que as unem em forma triangular e dão corpo ao Chiado. Garrett, Nova do Almada, Carmo. Por todo o lado testemunhei um ambiente militar florido pouco habitual no país dos brandos costumes impostos com pulso de ferro. Na noite que antecedeu esse dia de tantas novidades, não ouvi o Depois do Adeus e a Grândola. Estaria ligado a um outro posto radiofónico. Nessa madrugada, não vi os tanques na rua Augusta. Rua a cima, rua a baixo, ouvi tiros para os lados dos Mártires, presenciei o assalto ao jornal Época, vi um pide em fuga nas escadinhas do Duque. Fui arrastado até ao largo do Carmo para ver cair um regime e ver erguer um outro. Por aqui e por ali, o dia chegou ao fim, mas a festa prolongou-se nos seguintes. Com muitos pormenores que as cronologias registaram. O cinzento dessa quinta-feira desfez-se e a luminosidade duma primavera acordada veio ao encontro das gentes que há muito tempo a esperavam de braços abertos.

24 de abril de 2015

José Saramago: a noite em que a revolução saiu à rua

«Faltam cinco minutos para as onze horas. Paulo de Carvalho canta “E depois do adeus”.»
José Saramago, A noite (1979)
Sempre que o nome de José Saramago é chamado à colação, convocamos de imediato à memória um conjunto de textos compostos no seio do modo narrativo atualizado em forma de romance. Harold Bloom lá terá as suas razões quando afirma, a páginas tantas do que é ser Génio (2002), tratar-se dum «maravilhoso romancista […] um dos últimos titãs de um género em vias de extinção»*. O Memorial do convento (1982) surge à cabeça de todas as obras que o catapultariam para as ribaltas da aldeia global e lhe granjeariam, a seu tempo, os prémios Camões (1995) e Nobel (1998) da literatura. Todavia, o seu contributo para o engrandecimento das letras portuguesas passa ainda pelos trilhos do conto, da crónica, do ensaio, da poesia e do teatro. Em todos os géneros deu cartas e ditou normas indeléveis. 

Fixar-me-ei n’A noite (1979), uma imitação dramática de vidas vividas há precisamente 40 anos, em 1974, quando a noite de 24 de abril deu lugar à madrugada do 25 de abril. Trata-se duma peça em dois atos, com ação centrada na redação dum jornal da capital, composta a pedido de Luzia Maria Martins e levadas à cena em maio de 1979 pelo Grupo de Teatro de Campolide. O assunto é fácil de imaginar e não requer leituras de entrelinhas. A liberdade de expressão então conquistada dispensa-nos desse exercício quotidiano praticado em 48 anos de meias verdades e de mentiras integrais. Mencionam-se censuras, medos, boatos. Referem-se exames prévios, joguinhos de regime, notícias falsas. Fala-se nas apostas do totobola, discute-se a composição da primeira página, questiona-se a objetividade da informação. Ouve-se o matraquear das máquinas de escrever, dos aparelhos de telex, das rotativas de tipografia. Pela rádio, ressoa a voz de Paulo de Carvalho a cantar a canção vencedora do último festival da RTP e o ranger forte das botas na terra que antecede a voz de José Afonso a proclamar uma terra da fraternidade chamada Grândola, senhas duma revolução tantas vezes ensaiada e outras tantas malograda. Rumores, murmúrios, dúvidas sobre o sucesso da sublevação, sobre a orientação política dos vencedores. 

A representação mimética da morte dum regímen moribundo em cenário jornalístico não será, por certo, o melhor registo artístico dessa antemanhã de mudanças que caraterizam o nosso devir histórico recente. O próprio José Saramago se encarregou de relatar com palavras escritas «um dos mais extraordinários monumentos literários com que fica a contar a nossa ficção pós-25 de Abril». A opinião é de Luís Pacheco e encontra-se documentada na contracapa do Levantado do chão (1980) a que se refere. Uma verdadeira epopeia em prosa do povo alentejano, composta em forma de saga, mas que exibe em pano de fundo a realidade vivida no país, entre os derradeiros estertores da monarquia e os primeiros vagidos da democracia. Dolorosos uns e outros, como costuma ocorrer nestas ocasiões particularmente conturbadas, sobretudo para a arraia-miúda que assiste nos bastidores aos eventos evocados. Acrescentemos-lhe ainda a «Cadeira», o conto inaugural do Objeto quase (1977), a tal que provocara a queda do barão de Santa Comba e abreviaria o caminho em direção aos novos tempos. 

O modo dramático não se dá muito bem com a página de papel para comunicar. Prefere fazê-lo num espaço cénico e com palavras ditas por atores de carne e osso como nós. Só assim a ilusão do real atinge o clímax. Os responsáveis do Teatro da Trindade perceberam esta exigência da arte de Tália e voltaram a dar voz aos profissionais da informação recriados pela ficção. Entre novembro de 2013 e janeiro de 2014, mais de 7000 espetadores terão assistido à representação. Número exíguo de participantes que os condicionalismos empresariais impediram de ampliar. As conversas enquadradas por um 16 de março pretérito e um primeiro de maio vindouro, pontuadas por uma entrevista prevista com o chefe de governo e entremeadas com alusões irónicas aos chefes dos movimentos de libertação colonial, poderão voltar a ser travadas um sem-número de vezes por um sem-número de leitores. A vantagem dos livros reside, justamente, nessa possibilidade de assistir aos espetáculos da vida sem ter de sair de casa. Façamo-lo uma vez mais nós também. O assunto da peça continua atual. A ação iniciada nessa noite de abril ainda está em aberto. A luta entre a direita e a esquerda permanece ativa. O pano de cena erguido dentro e fora do palco da história ainda está por descer. O final feliz por que todos sonhámos ainda está por surgir. Aproveitemos o momento e sigamos em frente. Tempus regit actumtempus urgittempus fugit... 

(*) Harold Bloom, Génio. Os 100 autores mais criativos da história da literatura. Lisboa: Temas & Debates; Ideias, 2014, p. 574.

NOTA 
Texto publicado há precisamente um ano no Pátio de Letras, também à noite, a recordar uma outra noite ocorrida 74, numa data que gosto de recordar na companhia de Saramago, reposta agora neste espaço ainda à luz do dia.

20 de abril de 2015

Histórias trágico-marítimas

Maria Helena Vieira da Silva, História trágico-marítima ou O naufrágio, 1944

Naufrágios

Continuam a naufragar argonautas anónimos dos nossos dias nas águas tépidas do mar Mediterrâneo, o Mare Nostrum latino, o maior mar interior de águas salgadas do mundo, um mar entre terras, berço de culturas e civilizações milenares, espaço privilegiado de contacto de povos oriundos de três continentes.

Os imigrantes clandestinos dos nossos dias naufragados nas rotas da morte abrem telejornais e preenchem as primeiras páginas dos jornais, com imagens em movimento dinâmico de filme ou estático de foto, testemunho mudo de dramas alheios, de flashes de desespero, de fugas massivas à guerra, à miséria, ao caos.

Os comentadores dos mass media falam em desastre, genocídio, tragédia, causados por traficantes, terroristas, esclavagistas, palavras muito fortes com um poder muito fraco para explicar os 700 vítimas dum só dia, a juntar à 900 do primeiro trimestre do ano ou dos 300 das últimas notícias ao minuto da NET.

Os números são assustadores e deixam a perder de vista as histórias trágico-marítimas dos naufrágios cantados nas páginas das epopeias de helenos, latinos e lusitanos, heróis com nome registado na memória das gentes e direito a panteão nacional, arautos duma gesta pretérita que não admite concorrências no porvir...

19 de abril de 2015

Ecfrasis, uma imagem pintada com palavras

Sir Edward Burne-Jones, Portrait of Katie Lewis

KATIE LEWIS

Katie Lewis aprendera a ler sozinha, levada pelo rumorejar dos textos, pelo matiz das cores, uma por uma, ou dos arco-íris que se desprendem das histórias, que a empurram entontecida, uma após outra, na vontade ávida de saborear os livros...

Tinha quatro anos quando sir Edward Burne-Jones, pintor pré-rafaelita e amigo da família, começara a levar-lhe livros bem mais fascinantes do que aqueles que estavam nas estantes da biblioteca do pai, lugar que sempre lhe fora interdito, sem que ela alguma vez cumprisse essa proibição...

Katie, na verdade, nunca consegue saciar a sua sede de menina viciada pela leitura, corpo frágil a abandonar-se ao longo do comprido sofá dourado onde passa os dias, perto do qual Edward Burne-Jones, diante do cavalete que já ali ganhara o seu lugar, vai misturando com demora os óleos, as cores e as resinas, para a ir retratando na sua inquietude ambígua...

... a maçã vermelha esquecida, em risco de cair do sofá, afastada de uma das suas pernas cobertas pela saia marron, o cão branco-chumbo adormecido a seus pés, que ela cruza calçados de negro, meio encobertos e apoiados na grande almofada cor de fogo, quase idêntica àquela outra de chama mordida onde, de bruços, Katie mal roça a testa coberta pelos cabelos que se soltaram dos ganchos e das travessas de tartaruga... 
Maria Teresa Horta,  Meninas (2014)

17 de abril de 2015

Viajando com Andersen na bagageira

PAPER CUTS by HANS CHRISTIAN ANDERSEN
«Lady with pointy hat and green and black skirt. Christmas tree decoration»
[Odense City Museums - Hans Christian Andersen Museum]

A PROPÓSITO DA RAPARIGUINHA DOS FÓSFOROS
 
Viajei para a Dinamarca com uma coletânea dos contos de An-dersen na bagagem de bordo. No voo entre Lisboa e Copenhaga, reencontrei-me com A rapariguinha dos fósforos (1845). História estranha para contar às crianças dos nossos dias, tão pouco habituadas a encontrar na morte dos protagonistas um final feliz. Na época em que foi escrita, a consolação de encontrar no além uma recompensa celestial eficaz para as amarguras terrestre sofridas talvez funcionasse. O espírito salvador do Cristianismo, católico ou protestante, estava muito mais arreigado no espírito das gentes de idade menineira, juvenil ou adulta. Outros tempos.

O que me causou maior estranheza no relato tem muito pouco a ver com os problemas aludidos de ordem transcendental. O facto da heroína passar a última noite do ano a vender fósforos é que me pareceu perfeitamente peregrino. Absurdo. Perguntei-me muitas vezes quem é que, em seu perfeito juízo, se prestaria a tal negócio. Disparate. Depois, fiz uma primeira viagem à Dinamarca e encontrei, numa das praças de Copenhaga, uma jovem a vender cigarros e fósforos avulso. Soube então que no país de Andersen tudo se compra, vende ou troca, nada se pede emprestado, muito menos para matar o vício do fumo. Outras visões.

Foi também na capital dinamarquesa que observei a elegância do Soldadinho de chumbo vestido a rigor no render diário da guarda à rainha e confirmei a solidão da Sereiazinha de bronze exilada numa rocha do porto da cidade a pousar entediada para as fotografias dos turistas. Foi na paisagem dinamarquesa que me apercebi dos charcos, pântanos e pauis do Patinho feio e pude imaginar um Abeto nativo ataviado com os enfeites coloridos recortados por Andersen em pessoa como decoração pessoal duma árvore de Natal. «Viajar é viver». Eis o lema que o arquiteto de contos infantis mais conhecido no mundo escolheu como seu. Outras histórias.   

14 de abril de 2015

José Martins Garcia, crónicas e contos katafaraónicos de Nanfazcafalta

«Nanfazcafalta constatou que um erudito sentado nunca chegaria a interpretar um único símbolo katafaraónico. O mesmo se aplica aos sábios deitados, ajoelhados, acocorados ou de pé ‒ posições que vedam o acesso ao símbolo. Nanfazcafalta empreendeu a decifração de numerosos fragmentos, colocando-se naquela posição a que se dá o nome de pyno. O êxito de Nanfazcafalta que diz que as posições do texto e do leitor não são permutáveis.»
José Martins Garcia, Katafaraum é uma nação (1974) 
Lembro-me muito bem do último livro que li no tempo da outra senhora e das circunstâncias que o fez chegar às minhas mãos. Tenho-o aqui ao meu lado. A testemunhar a sua existência física para além da memória que guardasse dele. Faz ou fez agora 41 anos que o encontro ocasional se deu. Não sei precisar o dia exato de abril em que o adquiri na Compasso da Saraiva de Carvalho, a Campo de Ourique, a um quarteirão de distância da rua onde na altura morava. Teria saído do 28, agora tão na moda, e entrei no local de perdição, onde as novidades literárias imperavam com aquele chamamento impossível de resistir de papel impresso a cheirar a tinta. Chamou-me a atenção a orientação gráfica da capa vestida de vermelho e do título enigmático grafado a verde dum exemplar ali exposto, a que José Martins Garcia, um autor para mim desconhecido, dera à obra, Katafaraum é uma nação (1974). Folheei as quase duas centenas de páginas que o compunham e fiquei rendido à escrita registada nas entrelinhas, para descrever de modo embuçado um país que não tive dificuldade a identificar com o meu. Levei-o para casa e li-o numa assentada. Deliciado no exercício de decifrar as mensagens subliminares contidas no seu interior. Preparei-me a comentá-las com os meus amigos da época. Tão jovens como eu. Nunca cheguei a satisfazer esse meu desejo. A Revolução dos Cravos entrou em cena e tudo passou a ser encarado de modo diferente. Sou incapaz de identificar o primeiro livro que li em liberdade. Só sei que foi um entre muitos. Nenhum deles, todavia, terá exercido um efeito tão intenso como aquele que encontrei à minha espera numa pequena livraria de bairro alfacinha.

Os textos reunidos no volume editado com a chancela da Assírio & Alvim, inserido na nova série dos cadernos peninsulares, estão repartidos por duas partes distintas: vinte e uma «Crónicas», dezasseis das quais publicadas no suplemento «Fim de Semana» do jornal República; e nove «Contos Katafaraónicos» autónomos, o inaugural da série já divulgado no mesmo meio de comunicação escrita e os restantes com caráter inédito. Tudo se passa no país katafaraónico (Portugal), nação onde reina uma cultura-pensamento hidrófila (< hidro- + -filo = que gosta de meter água), senhora duma escrita intrigante só decifrada através do esforço iluminado do sábio oriental Nanfazcafalta (< Não-faz-cá-falta = erudição inútil). Oportunidade para criticar de forma cifrada - a única possível na altura - essa nação vizinha de Ispahan (Espanha), aquela em que a estrutura piramidal ou da lei do funil, ditada pelo basileus (imperador = chefe de estado) e pedagogúnico (< pedagogo + único = presidente do conselho) para felicidade suprema do rebanho em permanente transumância (migrações internas e externas). Ultrapassando a escrita hieroglífica inventada pelos homens de guitarra e de gládio, satiriza-se com a secular habilidade do escárnio e maldizer, a censura e os censores, a pedagogia e os pedagogos, a arte e os artista, a política e os políticos. Significativamente, o compilador anónimo dos fragmentos identificadores duma nação adverte, logo no início da fábula, relato ou alegoria, que o mais célebre de todos os centros hidrófilos foi arrasado por um maremoto, no ano setenta da nossa era, no momento em que se executava uma viragem inexorável para a esterilidade. A tal passagem artificial do salazarismo de má memória para uma primavera marcelista que nunca deu frutos muito palpáveis.                 

Guardo uma memória menos nítida da impressão que os contos da segunda parte da compilação então exerceram em mim. Obedecem a um registo diferente das crónicas, mais facilmente identificados com a tal nação verde-rubra colorida com vista para o mar e para algumas ilhas a perder de vista no horizonte. Talvez volte ao seu convívio um dia destes e reaviva as mensagens cifradas nos três ciclos simbólicos documentados: o Diabo (o vivo e o dos grandes remédios), o Herói (o imperfeito, o mais-que-perfeito e o perfeito), a Linguagem (a da competência e a da performance). Talvez o faça se estiver para aí voltado, até porque o livro que os profissionais do lápis azul e da tesoura castradora da censura deixaram passar inadvertidamente sem exercer o seu poder purificador para que estavam mandatados pela moral e bons costumes. Falta então imperdoável aos farejadores encartados de subversivos ou opositores do regime, que é o que Katafaraum também poderá querer significar (< Kata(r) + far(o) + a + um = catadores de parasitas). Talvez o faça, de modo a resgatar dum ostracismo imerecido um livro sobre a opressão que a liberdade, ironicamente, recambiou em 74 para o tal cemitério dos livros esquecidos, de que falava um ficcionista sobejamente conhecido à escala global nos nossos dias, lugar sombrio onde todos os livros se arriscam a ir parar, se deixarem de ser percorridos pelos sentidos despertos dos leitores: respirar o perfume segredado das palavras estampadas a negro em fundo branco e saborear avidamente as histórias tateadas com o olhar ao longo das viagens de descoberta pelos universos infinitos da imaginação libertadora.

6 de abril de 2015

Caminhos das Índias



Dobrando o mundo: a terra e os mares...

Empreendimento organizado de descobrimento a longo prazo, o feito dos portugueses foi mais moderno, mais revolucionário, do que as mais largamente celebradas proezas de Colombo. É que Colombo seguiu um rumo sugerido por fontes antigas e medievais, a melhor informação do seu tempo, e se tivesse alcançado o seu propósito confessado tê-las-ia confirmado. Não havia no seu espírito nenhuma incerteza, quer a respeito da passagem na rota para a Ásia, quer a respeito da direção a seguir. Só o mar era desconhecido. A coragem de Colombo consistiu em meter por uma passagem marítima direta para terras «conhecidas» numa direção conhecida, mas sem saber precisamente qual seria a extensão da passagem.

Pelo contrário, as viagens dos portugueses à volta da África e, esperava-se, para a Índia baseavam-se em ideias especulativas arriscadas, em boatos e sugestões. Teriam de ser contornadas terras desconhecidas, utilizadas como escalas de aprovisionamento de alimentos e água em viagem. Esta seguiria para lugares onde a geografia cristã ameaçava com perigos mortais, lugares muito abaixo do equador. Por isso, os descobrimentos portugueses exigiram um programa nacional progressivo, sistemático, passo a passo, para se ir avançando através do desconhecido.

O planeamento a longo prazo foi possível porque os portugueses tinham empreendido uma aventura nacional com espírito de colaboração.
Daniel J. Boorstin, Os descobridores (1983)

3 de abril de 2015

Michel Houellebecq, história duma submissão anunciada

« Il est probablement impossible, pour des gens ayant vécu et prospéré dans un système social donné, d'imaginer le point de vue de ceux qui, n'ayant jamais rien eu à attendre de ce système, envisagent sa destruction sans frayeur particulière. »
Michel Houellebecq, Soumission (2015)
O meu encontro cara a cara com o mais recente romance de Michel Houellebecq, Soumission (2015), deu-se na Fnac de Faro, a única livraria da cidade onde moro que ainda se atreve a vender livros em francês. Fiquei a olhar para um dos exemplares estrategicamente expostos a perguntar-me se lhe pegaria de imediato ou se esperaria por uma edição de bolso mais económica e fácil de arrumar numa das estantes de casa. Partilhei o dilema com uma cliente francesa que ali estava a ver as novidades. Esta aconselhou-me a esperar pelo Natal, altura em que estava prevista a sua publicação em tamanho e preço reduzidos. A rematar a conversa de circunstância, sugeriu-me, ainda, a escolha doutros títulos alternativos, bem mais interessantes do ponto de vista estético-literário, do que aquele que as polémicas divulgadas pelos mass media já haviam convertido num bestseller internacional. Agradeci as informações prestadas e resolvi adquiri-lo naquele mesmo instante. Os tais impulsos comandados insubmissos que as leis da razão têm dificuldade em explicar ou desistem de o fazer.

A leitura foi rápida e proveitosa. Alertou-me para a possibilidade de nas próximas eleições gaulesas o palácio do Eliseu vir a ser ocupado por um presidente muçulmano. Até aqui nada de especial. Num estado secular, as convicções religiosas dos cidadãos, incluindo as do mais alto dignitário, não podem interferir em momento algum no desempenho integral das funções governativas ou no exercício das restantes liberdades cívicas que os assistem de juris et de jure. A minha objeção à realidade narrada surge quando o status quo da Quinta República é totalmente subvertido nesta antecipação ficcionada de cariz político. O novo poder instituído no país remete para o caixote de lixo da história os mais elementares princípios inaugurados pela Revolução Francesa e exportados para toda a aldeia global. O mais chocante da situação é que a esmagadora maioria dos habitantes do hexágono parece aceitar a situação com uma naturalidade inquietante. Deixa-se submeter, sem pestanejar, às mais radicais normas do Islão. Até se converte ao novo credo corânico, para manter ou recuperar um emprego ameaçado ou perdido.

O insólito da situação obriga-nos a uma pequena reflexão que nos permita apontar para possíveis lições do texto, tão polémico como todos aqueles que o autor tem vindo a pôr à disposição do leitor. A falência dos partidos tradicionais anunciada para 2022 já começou a concretizar-se nas eleições locais de 2015, a pouca distância da publicação da distopia que alguns lá vão comparando, a bem ou a mal, ao Brave New World (1932) de Aldous Huxley e ao Nineteen Eighty-Four (1949) de George Orwell. A vitória dum partido islâmico nascido do nada é que será mais difícil de realizar no espaço de tempo tão curto dum mandato presidencial. Admite-se a derrota relativa da Frente Nacional mas estranha-se a ausência de referências ao Estado Islâmico, tão presente nos noticiários difundidos pelos jornais, rádios e televisões à escala planetária. O anúncio da decadência do modelo ocidental tal qual o conhecemos hoje deixou há muito de ser entendida como uma mera figura de retórica. A realidade já se encarregou de confirmar algumas das previsões mais sombrias umas décadas atrás. Daí a configurar o ressurgimento dum novo império romano, regido pelas leis mais extremadas da sharia e a reboque da França, é que resulta pouco credível e sem pernas para andar. Uma redução ao absurdo, em suma, duma situação possível mas pouco provável de implementar nesta parte mais ocidental da península euroasiática.

Este relato de antecipação política a curto prazo não é certamente a melhor ficção de Houellebecq. Já li melhor. Não será porventura a pior, como alguns críticos mais existentes afirmam. Como desconheço a obra completa do autor desta Submissão, estou impedido de tecer juízos de valor ancorados no rigor na subjetividade de leitor atento. Trata-se dum texto honesto que desenha uma perspetiva muito pessoal de encarar o devir histórico. Uma caricatura eficiente riscada com traço firme. Um discurso fluente e incisivo. Uma pedrada no charco lançada contra o estado de apatia em que os cidadãos do velho continente caíram. Uma fábula dos nossos dias. Um escrito exemplar que se inscreve no duplo propósito de divertir e instruir. Retiremos as ilações sugeridas e tomemos conta do nosso destino, em liberdade, que de seres providenciais e salvadores está o inferno cheio.

1 de abril de 2015

Poisson d'avril


Pesquei um peixe deste tamanho!  Afiança o autor da alegada proeza, esticando os braços na sua máxima extensão. A historieta ilustra bem a hipérbole do pescador bafejado pelas graças da fortuna, deixando por esclarecer a sua associação ao Dia das Mentiras, a que os franceses dão o nome de Poisson d'avril.

Informam os linguistas que a expressão seria uma corruptela de Passion de Cristo, celebrada pela Igreja Católica no mês de abril. As deambulações de Jesus de tribunal em tribunal teriam inspirado os povos a mandarem correr de Ceca em Meca todos aqueles que fossem alvo de escárnio ou mal-dizer.

Garantem outros que a escolha do peixe estaria associado ao jejum quaresmal exigido pelo cânone cristão, que proíbe o consumo da carne como penitência. O dito alternativo de manger le poisson d'avril ligar-se-ia a todos aqueles que se recusassem a comê-lo nesse período litúrgico, indiferentes ao pecado da gula.

Há ainda quem faça remontar a tradição ao momento em que o ano passou a iniciar-se em janeiro e não no domingo de Páscoa, como até então ocorrera. A mudança foi entendida como uma mentira esfarrapada, convertendo o primeiro dia de abril na data mais indicado para as cometer impunemente.

Verdade ou mentira, pouco importa até onde nos leva a imaginação mais ou menos fantasiosa para dar sentido aos sem-sentidos da vida. Mito lhe chamaram os gregos. Patranha, peta e tanga diríamos nós. Optar até pelo galicismo blague e afirmar: Je ne ments jamais, c'est toujours la verité qui se trompe.