31 de março de 2016

Par avion...

Patrick Willcocq - Walé Asongwaka takes off... - 2013
 
[Bibliothèque national de France]

RELATIVIDADES RESTRITAS OU GERAIS

Li esta manhã na página virtual «Notícias ao Minuto» da NET, na secção TECH, que a Virgin Galactic e a Boom Technology estão a desenvolver um novo avião comercial supersónico. Segundo reza no texto da nota informativa, esta aeronave do futuro estaria apta a voar a uma velocidade duas vezes superior à do som, permitindo assim estabelecer a ligação entre Nova Iorque e Londres em menos de três horas e meia. Isto sem contar, evidentemente, o tempo que se passa nos aeroportos a fazer os check-in e check-out, os controles alfandegários e quejandos.

Li logo de seguida, agora na secção PAÍS, que já haviam sido cancelados hoje onze voos provenientes de França, devido à greve dos controladores aéreos locais. Realidade peregrina que a minha experiência recente confirma. No regresso duma curta estadia em Rennes, vi o meu itinerário Nantes-Lisboa ser desviado para Lyon e ter perdido a ligação a Faro. Uma viagem de quatro horas, acabou por ser debitada em quinze. Ironias dos nossos dias que me levam a dizer, como Einstein o fez à sua maneira, que nesta questão de espaço-tempo, é tudo muito relativo.

30 de março de 2016

As novas torres de Babel

Até hoje, a diversificação das línguas no mundo é incompreensível, porque, sendo a língua um meio de comunicação, elas se separaram até se tornarem um obstáculo à comunicação [...] A curiosidade humana pelas origens deu lugar a um mito bíblico, o mito da Torre de Babel, segundo o qual a variedade das línguas no mundo é uma consequência da rivalidade entre os deuses e os homens. A incomunicabilidade entre os idiomas é sentida como um mal e como um castigo divino.
António José Saraiva, «A Torre de Babel», IN Cultura (1993: 24-25)
Afirma o autor anónimo do Génesis que o Deus de Israel, quando criou o homem à sua imagem e semelhança, lhe deu o dom da palavra, o modo mais eficiente posto à sua disposição para se apropriar de todas as coisas existentes ao cimo da terra, através dos nomes que lhes desse. No princípio dos tempos está portanto o verbo, o alicerce da linguagem humana e da comunicação.

Na mesma altura em que o interesse pelo português parece estar a crescer um pouco por toda a parte no topo das línguas mais impor-tantes a nível global, os meios de comunicação social bombar-deiam-nos diariamente com uma bateria de palavras soltas ou agru-padas em frases de estranha sonoridade para os ouvidos treinados na lusofonia. Barbarismos próprios duma nova Torre de Babel.

Eles são os cookies e browser, os sites, links e pen drives, os croll lock, print Scrn e SysRq. Lugar para os hardware/software e down-load/upload. E há o recente brunch a dar a mão ao já assimilado lunchNa gíria dos mercados fala-se no default da Grécia sem Grexit. O fisco recorre cada vez mais ao outsourcing|contracting out, quando lhe bastava falar numa mera contratação externa...

A veleidade do português ser uma língua mundial tem sido negada pelos detentores da palavra escrita e falada neste país. Puna-se a arrogância como no mito bíblico. Torne-se o idioma irreconhecível. Dividir para reinar. Dá vontade de imitar Mário de Carvalho e repetir a frase que pôs na boca duma divindade desconhecida do In excel-sum: «São imprevisíveis os caminhos que a Mim conduzem.» *

NOTA
(*) - Vd. Mário de Carvalho, «In Excelsum», IN A inaudita guerra da avenida Gago Coutinho. Lisboa: Edições Rolim, 1983, p. 13.

25 de março de 2016

Voyage à bord du Sud-Express...

Affiche -  Sud Express - Forum Léo Ferré 

Em tempos que já lá vão, havia uma ligação por caminho de ferro entre Lisboa-Santa Apolónia e Paris-Austerlitz. Dava pelo nome pomposo de Sud-Express e debitava uma infinidade de tempo até chegar a Irún-Hendaye, estações fronteiriças onde se mudava de carruagem e ganhava uma maior velocidade até ao destino final escolhido. Utilizei duas vezes o seu percurso ibérico de ida-e-volta na segunda metade da década de 70. Férias de verão que me leva-ram depois de Bordéus até Rennes, ponto de partida privilegiado para iniciar uma série de visitas nunca concluídas à Bretanha. 

Recordo-me com alguma precisão das peripécias vividas na estreia. O atraso verificado em França foi de alguns minutos. O peninsular de 24 horas. Poucos turistas, muitos emigrantes. Toutes les places prises. Multiplamente vendidas algumas delas pelas agências de viagem. Vagão-restaurante fechado. Casas de banho imundas. Couchettes inexistentes. Ambiente folclórico de cassete-pirata. Pi-queniques improvisados com arroz de tomate, pastéis de bacalhau, frango assado, talhadas de melancia e melão, tudo regado com tinto bebido do garrafão. Alegria contagiante em final de vacances.

Posteriormente troquei o comboio pela automóvel. Outras regiões de l' Hexagone começaram a alternar com o Pays breton du Roi Arthur et armoricain d'Asterix le Gaulois. Agora faço-o de avião. Mais rápido, mais económico, mais prático. Menos divertido também. As valises de carton cederam paso às valises à roues. Opta-se pelo catering a bordo ou pelo fast-food nos aeroportos. Pizzas, hot dogs, hamburgers, coca-cola e cerveja em lata. Tudo entre o check-in e o check-out. Sinais dos tempos deste nosso mundo global. Pas  plus de charme, pas plus de burlesque, pas plus de fado.    

20 de março de 2016

Falemos de equinócios e solstícios...


LE SOLSTICE D'ÉTÉ

21 mars : le printemps, l’équinoxe. On guette chaque signe de l’allongement des jours. L’année se met à dévaler, tout s’accélère. On file vert l’été. Après le 21 juin, déjà, les jours commencent à raccourcir. On s’en amuse, parce que bien sûr les meilleurs mois d’été sont encore à venir, les déambulations dans les rues chaudes, les repas aux terrasses, aux bougies dans les jardins.

 Quand même, lance toujours quelqu’un, soulevant autour de lui une réprobation agacée, quand même, les soirées sont déjà moins longues…

À soixante ans on a franchi depuis longtemps le solstice d'été. Il y aura encore de jolis soirs, des amis, des enfances, des choses à espérer. Mais c'est ainsi : on est sûr d'avoir franchi le solstice. C'est peut-être un bon moment pour essayer de garder le meilleur : une goutte de nostalgie s'infiltre au cœur de chaque sensation pour la rendre plus durable et menacée. Alors rester léger dans les instants, avec les mots. Le solstice d'été est peut-être déjà l'été indien, et le doute envahit les saisons, les couleurs. Le temps n'est pas à jouer ; il n'y a pas de temps à perdre. 

Avec les mots rester solaire. Je sais ce qu'on peut dire à ce sujet : l'essentiel est dans l'ombre, le mystère, le cheminement nocturne. Et puis comment être solaire quand l'humanité souffre partout, quand la douleur physique et morale, la violence, la guerre recouvrent tout ? Eh bien peut-être rester solaire à cause de tout cela. Constater, dénoncer sont des tâches essentielles. Mais dire qu'autre chose est possible, ici. Plus les jours passent et plus j'ai envie de guetter la lumière, à plus forte raison si elle s'amenuise. Rester du côté du soleil. 
Philippe Delerm, Le trottoir au soleil (2011: 14-15)

18 de março de 2016

Michel Houellebecq, as cumplicidades dialéticas do mapa e do território

« Le contraste était frappant : alors que la photo satellite ne laissait apparaître qu’une soupe de verts plus ou moins uniformes parsemée de vagues taches bleues, la carte développait un fascinant lacis de départementales, de routes pittoresques, de points de vue, de forêts, de lacs et de cols. Au-dessus des deux agrandissements, en capitales noires, figurait le titre de l’exposition : "LA CARTE EST PLUS INTÉRESSANTE QUE LE TERRITOIRE" »
Michel Houellebecq, La Carte et le Territoire (2010)
Ouvi falar pela primeira vez de Michel Houellebecq meia dúzia de anos a propósito d’O mapa e o território (2010) e dos ecos que até nós chegaram da atribuição polémica do Prix Goncourt à obra. O nome do autor ficou-me no ouvido, até pela sonoridade algo exótica que o acompanha e pela forma singular de o registar. Umas férias de verão projetadas para Rennes aconselharam-me a aguardar para então a sua aquisição in loco. Fi-lo na livraria Le Failler da rua Saint-Georges. Veio acompanhado dos restantes romances publicados. Cu-riosamente, agora acabei de lê-lo, de cabo-a-rabo e num-só-fôlego. Em último lugar. O proveito e deleite experimentado em anteriores viagens repetiu-se.

O argumento central da história é revelado na contracapa da edição de bolso que tenho entre mãos. Especula-se aí que se o relato tivesse sido confiado ao protagonista, Jed Martin, este tê-lo-ia iniciado pelas peripécias associadas à avaria do esquentador do apartamento parisiense em que vivia à época. Falaria depois do pai arquiteto e das inúmeras consoadas solitárias de Natal que celebravam juntos. Referir-se-ia, também, ao seu primeiro encontro com Olga, uma beldade russa que encontrara na primeira exposição fotográfica que fizera a partir dos mapas rodoviários publicados pela Michelin. Tudo isto a anteceder o sucesso mundial que viria alguns anos mais tarde a obter com um conjunto de retratos a óleo de figuras públicas de renome internacional, entre as quais a do escritor Michel Houellebecq. Mencionaria, ainda, a ajuda preciosa que prestara ao comissário Jasselin para desvendar os enigmas dum crime cometido com grande atrocidades e com repercussões mediáticas. O resumo termina aí impedindo-me de prosseguir a análise abusiva dos fios da trama urdidos no texto. Vistas bem as coisas, o esquema autobiográfico sugerido na paráfrase corresponde ipsis verbis ao seguido na versão original parafraseada. Brincadeiras publicitárias que apetece consignar para que constem.

Lidos os livros que compõem o corpus em apreço do criador de situações possíveis dos nossos dias e dos vindouros, sinto-me apto a considerar o derradeiro da lista visitada em ordem acrónica como o mais tranquilo de todos. As temáticas da arte, dinheiro, amor, morte, trabalho, turismo, família já abordadas de modo recorrente nas restantes ocasiões voltam a ser chamadas à colação sem os exageros discursivos com que se habituou a brindar os consumidores da sua escrita. Assinadas as tréguas com o mundo envolvente, o plano escolhido para alimentar hipotéticas celeumas na república das letras assentou arraiais na já aludida presença do autor na tessitura narrativa, com estatuto de coprotagonista duma das suas sequências mais surpreendentes, a descrição física e psíquica completa do próprio Houellebecq feita pelas mãos do sujeito de enunciação interna dos factos narrados. Verosímeis na sua quase totalidade, ficcionados na exposição mórbida da antecipação do seu próprio assassinato, enterro e testamento, efetuada na qualidade de personagem imaginada por uma personalidade real homónima. Oportunidade de dialogar consigo mesmo no interior da fábula no momento preciso da sua conceção. Fantasias existenciais que só o faz-de-conta gerado pela literatura torna possível.

Estratégias de autopromoção garantidas à parte, a verdade é que o fabricante de imagens disfóricas pintadas com palavras tem o condão de nos prender à magia dos sentidos segundos nelas contidos. Só conseguimos parar na presença inevitável do postreiro diacrítico de pontuação grafado na folha de papel que lhe serve de canal. E pomo-nos a conjeturar a configuração dos próximos projetos romanescos a animar uma qualquer rentrée literária e a alimentar o número potencial de bestsellers edificados à escala global. Oportunidade de promover o debate generalizado das principais questões que povoam a nossa realidade quotidiana e ajudam a traçar o verdadeiro perfil da condição humana. Caricatural, absurda, paradoxal. E o problema da eutanásia até pode ser chamado a pisar de novo as tábuas da ribalta. Incómodo, amargo, desagradável. A velhice a atravessar-se-nos neste nosso mapa e território feito por medida para a eterna juventude com anseios de eternidade. Eutopias virtuais transformadas em distopias reais por artes de berliques e berloques magistralmente executadas e postos à nossa inteira disposição. Verdadeiro segredo gritado aos sete ventos para todos aqueles que tiverem bom ouvido e estiverem preparados para ouvi-lo.

15 de março de 2016

Retratos pintados e contados

ARPAD SZENES, Marie-Hélène X, 1942

(Arpad Szenes pinta Vieira da Silva pintando Arpad a pintar...)
[Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva]

Je dérange ?

Lembrava-me por exemplo de partilhar a opinião bastante difundida de que Arpad era vítima da excessiva proximidade de Vieira, como o seu ar inofensivo de bicho, Ma Femme Chamada Bicho. Madame Bicho ia visitar o marido a um ateliê que ele tinha construído no jardim, para se livrar de Madame.

Ao contrário de mim ele era um homem suave, demasiado suave para impor quaisquer regras e exigir que fossem cumpridas. Não ousava enfrentá-la e impedi-la de entrar quando ela, uma vez por outra, abria a porta sem bater e perguntava:

«Je dérange?», já depois de ter entrado.

Ela tinha uma espécie de estratégia eficaz: afastava-se e deixava-o em paz por algum tempo, e quando achava que fora tempo suficiente e ele tinha a obrigação de já ter realizado algo que valesse a pena, ali estava ela à sua porta, com ar tímido e curioso de discípula admirativa, que vem visitar o mestre.

«Je dérange?» perguntava com voz humilde, cheia de doçura.

E quando ele cedia, por fraqueza, em vez de fechar a porta à chave ou de gritar com todas as forças:

«Oui, tu déranges!»

ela deitava em volta um olhar voraz, via tudo no mesmo segundo em que entrava, e já saía de novo porta fora, levando a inspiração que procurava.

Dentro de dias aí estavam as ideias dele, transformadas, ampliadas, metamorfoseadas em ideias dela. Imensamente fortes, evidentes, como se tivessem sido dela desde sempre.

Então ele deitava fora os estudos e os esboços em que timidamente experimentava algo de novo, que ela depois desenvolvia e pelo que recebia créditos e admiração do mundo.

Teolinda Gersão, A cidade de Ulisses (2011: 116-117)

12 de março de 2016

Mathias Énard, Zona: a viagem no tempo à procura do fim do mundo

«...ils parlaient de nos trafics, de la région qu’ils appelaient the area “la Zone” et de leur sécurité, sans dire jamais le mot “arme” ou le mot “pétrole” ou n’importe quel autre mot d’ailleurs à part investment et safety...»
Mathias Énard, Zone (2008)
O fascínio exercido pela epopeia homérica no nosso imaginário cole-tivo ao longo dos últimos três milénios é surpreendente. Gerações de ouvintes e leitores das rapsódias cantadas em torno da guerra de Troia têm-se encarregado de perpetuar os feitos dos heróis que a travaram durante dez intermináveis anos. Aqueles mesmos seres divinos que depois conquistaram, pilharam e incendiaram sem nem piedade a cidade sagrada de Ílion, que encetaram as viagens de regresso aos lares distantes onde deixaram anciãos, mulheres e filhos menores, que enfrentaram mil e uma dificuldades arquitetadas pelos ciúmes eternos dos deuses imortais pela mortalidade dos humanos. Quem duvidar desta nossa memória multissecular que se dê ao trabalho de pesquisar o número incontável de obras que os poetas têm vindo a recriar desde então até aos nossos dias. Limitar-me-ei a referir uma e a anotar outra, por ajudarem a ajustar as balizas histórico-culturais algo fluídas da modernidade e da pós-modernidade.

A primeira foi idealizada por James Joyce nas páginas do Ulisses (1922), uma extensa e circunstanciada epopeia em prosa que nos põe ao corrente das errâncias urbanas de Leopold Bloom pelas ruas de Dublin, no dia 16 de junho de 1904. As referências diretas ao rei de Ítaca primam pela ausência. O mesmo se diga da totalidade dos aqueus e troianos que povoam a Ilíada e a Odisseia. No entanto, a estrutura épica imaginada pelo ædo de Quios acompanha-nos da primeira à última página do livro, num universo de referências em que a matriz clássica greco-romana é constantemente revezada pela judaico-cristã, situada num contexto bem irlandês de cariz católico-protestante. O segundo texto anunciado deve-se a Mathias Énard, que lhe deu o título algo enigmático de Zona (2008) e se baseia nas deambulações de Yvan Derroy / Francis Servain Mirković pelos trilhos da memória de ex-guerrilheiro croata, ex-espião francês e ex-delator internacional, enquanto percorre de comboio as paisagens noturnas que ligam as gares de Milão e Roma. As aventuras/desventuras dos heróis da imaginação helénica estão bem presentes em toda a efabulação, em assíduo diálogo com os anti-heróis que a realidade mediterrânica foi erigindo desde o tempo da queda das muralhas de Ílion até à noite de 8 de dezembro de 2004, no rescaldo ainda fresco da queda em 9 de novembro de 1989 do muro de Berlim ou de todas as vergonhas.

O romance mais recente desenvolve-se como um longo e único período-parágrafo-frase do protagonista, cuja corrente de pensamento só é interrompida três vezes para dar voz a um relato encaixado de amor e morte vivido na cidade-mártir de Beirute, durante uma das incessantes guerras civis que a têm assolado. No total, as instâncias discursivas necessitaram de 24 capítulos (cifra idêntica às 24 horas do Bloomsday, às 24 rapsódias centradas na cólera de Aquileus e mais 24 para enquadrar a viagem-vingança de Odisseus), para compilar todas as histórias laterais que dão corpo à tessitura nuclear, também ela recheada de flashes episódicos vários, repartidos pelas três margens do Mediterrâneo, ponto de confluência de três continentes, à sombra das cidades que ergueram e derrubaram impérios ou viveram à sombra de outros. Podemos omitir as já registadas e referir Constantinopla, Jerusalém e Argel, que muitas ficariam ainda de parte, todas elas necessárias para definir as fronteiras exatas da «Zona». Aliás, o próprio narrador tem dificuldade no seu traçado preciso. O grande espaço cénico dos eventos evocados abrange a totalidade das terras banhadas pelo grande mar fazedor de civilizações. Começa em qualquer ponto do velho mundo e pode até terminar no Vaticano, nos arquivos da cidade-estado mais poderosa dos nossos dias, passaporte para o fim do mundo e para uma vida nova. Entre as bagagens do passageiro-efabulador do grande comboio transitaliano encontra-se uma maleta de mão carregada de documentos, nomes, fotos e relatórios secretos, uma coleção de fantasmas que lhe permitirão abrir as portas para a eternidade.

O texto refere-se muitas vezes ao dilema de Aquiles, o ter de eleger entre morrer jovem na guerra e coberto de glória ou morrer velho em casa, sem honra nem proveito e esquecido de todos. O filho da ninfa Tétis e do rei Peleus optou pela primeira hipótese. Preferiu a fama ao anonimato. Espalhou o luto por toda a parte e acedeu por mérito próprio e vontade de Zeus à ilha dos bem-aventurados. Os deuses estão sempre a surpreender-nos. O Mediterrâneo tem sido desde Troia um berço de heróis. Só que a maioria dos mortos não morará na memória de ninguém. Ironia trágica dos simples viventes como nós, que não têm a proteção divina de nenhum dos progenitores. Aos filhos das sombras só resta mesmo o reino das sombras, o mísero destino dos mortais...

NOTA
Agora que tanto se fala das histórias trágico-marítimas protagonizadas neste nosso dia-a-dia conturbado de travessias-naufrágios mediterrânicos e de caminhadas-errâncias sem fim à vista por três continentes, lembrei-me de recuperar este texto paradigmático, composto há meia dúzia de anos e publicado um pouco depois no Pátio de Letras. O romance que lhe forneceu tópicos de reflexão recorre a outros relatos épicos, compostos em verso e prosa, a demonstrar que o destino peregrino dos homens não mudou muito no decurso de séculos e milénios de devir histórico.

9 de março de 2016

O adeus à múmia...

Anúbis inclinado sobre uma múmia
[Túmulo de Sennedjem‎, Deir el-Medina -1300 AEC]
O jornal Público solicitou a seis figuras conhecidas da nossa praça que atribuíssem um cognome adequado ao então Chefe de Estado, nas vésperas deste trocar o palácio de Belém pelo convento do Sa-cramento em Alcântara. O Professor, o Estadista, o Presidente, o Crente, o Prudente, o Incoerente foram as sugestões apontadas. Epítetos politicamente corretos para serem divulgados sem ferir a suscetibilidade de ninguém em particular. Nenhum deles se atreveu a chamar-lhe a Múmia, o apodo com que a plebe o brindou com  in-sistência na fase terminal do duplo mandato presidencial.

Vox populi, vox dei. se fazem, se pagam. Assim rezam os provérbios para justificar os significados contidos nas etiquetas esco-lhidas para definir o perfil do mais alto dignitário do estado no desem-penho das suas funções. A outros chamaram sem pestanejar o Cabeça-de-Abóbora, o Caco-de-Vidro, o Chico-Rolha, o Bochechas. Referências caricaturais situadas nos limites admíssiveis da zomba-ria pura e do gracejo gratuito. Alcunhas baseadas em traços físi-cos/psíquicos de identificação imediata. O tal humor à portuguesa feito de escárnios e maldizeres seculares. Doa a quem doer.

O Presidente da República está de partidaLe roi est mort, vive le roi. Gritar-se-ia nos tempos da monarquia. Não deixou atrás de si fama de Boa-Memória, de Eloquente ou de Príncipe-Perfeito. Muito menos passará a fasquia inicial do Desejado para a final do Popular. As sondagens que todo lo pueden desmenti-lo-iam de imediato. Quem melhor cama fizer, melhor nela se deita. Quem semeia ventos, colhe tempestades. E por aí adiante. A sabedoria popular é incomensu-rável. O sucessor vem já com a reputação do Cata-vento. Veremos para que lado soprará o ar posto agora em movimento.  

4 de março de 2016

Delgadina se paseaba de la sala a la cocina...

LA DELGADINA

(Pintura mexicana del siglo xviii)

LIVROS & LÍRICAS
Rosa Cabarcas me había aconsejado que la tratara con cautela, pues aún le duraba el susto de la primera vez. Es más: creo que la misma solemnidad del rito le había agravado el miedo y habían tenido que aumentarle la dosis de valeriana, pues dormía con tal placidez que habría sido una lástima despertarla sin arrullos. De modo que empecé a secarla con la toalla mientras le cantaba en susurros la canción de Delgadina, la hija menor del rey, requerida de amores por su padre. A medida que la secaba ella iba mostrándome los flancos sudados al compás de mi canto: «Delgadina, Delgadina, tú serás mi prenda amada». Fue un placer sin límites pues ella volvía a sudar por un costado cuando acababa de secarla por el otro, para que la canción no terminara nunca. «Levántatate, Delgadi-na, ponte tu falda de seda». Le cantaba al oído. Al final, cuando los criados del rey la encontraron muerta de sed en su cama, me pareció que mi niña había estado a punto de despertar al escuchar el nombre. Así que era ella: Delgadina.

Gabriel García Márquez, «Memoria de mis putas tristes» (2004: 57-58)