28 de agosto de 2017

Crónica estival duma bola-de-berlim

 BOLINHAS-DE-BERLIM 

Barquilheiros & Bolinheiros

Nas praias do oeste estremenho da minha infância e adolescência, gritava-se a plenos pulmões: Barquilheeeero, Bolacha Americana!... O pregão ecoava por entre as barracas de lona estampada com riscas coloridas. Aldeias de armar e desmontar todos os verões, com ruas de areia branca e vista para o mar azul.

Nas praias do sotavento algarvio das minhas maturidades pós-adolescentes, grita-se: Boliiiinhas, com creme sem creme, com alfarroba ou chocolate!... O pregão continua a ecoar por entre os guarda-sois garridos plantados a esmo ao longo da costa. Florestas estivais de abrir e fechar no areal à beira-mar.

Nas praias do sul pré-mediterrânico, começa a gritar-se: Saladiiiinhas de Fruta! O pregão ecoa solitário. Sem sucesso. A fruta come-se fresca em casa, a bolinha quente acabada de fritar. A bola-de-berlim continua rainha em terras republicanas. Mistérios gastronómicos dos sentidos que Pantagruel saberá explicar.

21 de agosto de 2017

Amin Maalouf, o périplo de Baldassare em busca do centésimo nome de Deus

« Dieu a-t-il un centième nom, caché, qui viendrait s'ajouter aux quatre-vingt-dix-neuf que nous connaissons ? S'il en a un, quel est-il ? Est-ce un nom hébreu ? un nom syriaque ? un nom arabe ? Comment le reconnaître si on le voyait dans un livre ou si on l’entendait ? Qui, par le passé, l’a connu ? Et quels pouvoirs ce nom confère-t-il à ceux qui le détiennent ? »
Amin Maalouf, Le périple de Baldassare (2000)
Quando os livros falam de livros, o prazer da leitura duplica, triplica, quadruplica ou eleva-se à enésima potência, consoante o número de títulos referidos, citados ou comentados. Amin Maalouf faz parte desse escol de criadores de heróis da imaginação, em que o universo da palavra escrita em páginas de papel preenche a malha gráfica de histórias contadas com histórias dentro, também elas por contar ou recontar, tantas vezes quantas o olhar ávido do leitor assim o reclamar. As peripécias andarilhas de percurso relatadas em O périplo de Baldassare (2000), Prix Jacques Audiberti-Ville d’Antibes, no ano da sua publicação, não fogem a esse desenho diegético de fino traço, onde os momentos de proveito e deleite se cruzam em cada etapa da viagem, para dar corpo à fábula e sentido ao discurso. 

Baldassare Embriaco, genovês do Oriente e negociante de curiosidades, confidencia às laudas dum diário pessoal repartido por quatro cadernos as razões que o levaram a encetar a recuperação dum livro lendário de Abou-Maher al-Mazandarani, A revelação do nome escondido, mais conhecido pela designação de O centésimo nome, aquele que daria a conhecer aos eleitos o verdadeiro nome de Deus, para juntar aos noventa e nove epítetos restantes de Al-ilah (Alá)registados no Alcorão. Fá-lo também na convicção de que assim garantiria a salvação dum mundo condenado inexoravelmente ao desaparecimento total. Redige-o em italiano codificado com carateres árabes, enquanto viaja pelos três continentes do Velho Mundo, como se se tratasse dum verdadeiro roteiro de bordo. Inicia o relato quatro meses antes do bíblico Ano da Besta e conclui-o no primeiro dia de 1667, passado o perigo prognosticado no décimo terceiro capítulo do Apocalipse de São João, quando o número cabalístico de 666 se transforma no de 1666. O final dos tempos estava previsto no derradeiro livro dos livros. As superstições da época assim o exigiam.

O ponto de partida do périplo anunciado no título do romance situa-se no medieval Senhorio de Gibelet (1104-1302), fundado por um familiar do protagonista-relator no âmbito das Cruzadas Cristãs à Terra Santa. Prossegue por terra e mar, em etapas de duração variável pela Síria e Cilícia, pelos montes de Taurus e planalto da Anatólia, estreito dos Dardanelos e ilha de Quios, navega nas águas do Egeu e do Mediterrâneo, Atlântico e Mancha, visita uma primeira vez Génova e dirige-se a Londres, com passagem por Minorca, Tânger, Lisboa e Amesterdão, para regressar de modo definitivo a Génova, de onde o seu avoengo Guilherme Embriaco partira 563 anos antes. O verdadeiro périplo de Baldassare, o histórico e o ficcionado, acabava de terminar. Pelo meio ficou um livro oferecido, vendido, procurado, perseguido, descoberto, perdido, recuperado. Aberto para a leitura, fechado para o entendimento. É que apenas os dignos teriam acesso à chave da sua decifração. Só a pureza dum novo Galaaz permitiria pronunciar o sagrado nome da divindade suprema dos três monoteísmos.

Lidos os livros, o real e o imaginado, o diarista apercebe-se das suas limitações de pecador para conhecer os desígnios do Senhor e desiste de o fazer. Apercebe-se, também, que as calamidades previstas para esse ano aziago se tinham limitado, grosso modo, ao Grande Incêndio de Londres, que lavrou de 2 a 5 de setembro de 1666. Parte da cidade de Carlos II Stuart e Catarina de Bragança foi engolida por um inferno de chamas, mas o resto do mundo ficou incólume à catástrofe. Sobreviveu. As profecias da extinção apocalíptica dos tempos ficaram adiadas sine die, e, com elas, as tentativas de renovação de fé dos arautos iluminados das três religiões do Livro: os Impacientes muçulmanos do Imã Escondido, o advento do Messias judaico Sabbatai Zevi, as histórias do futuro do jesuíta português António Vieira. As histórias com História dentro contadas à maneira de Amin Maalouf chegam ao fim quando já não há mais nada a registar nos cadernos de Baldassare Endriaco. O balanço da peregrinação encontrara o seu ponto final. O cronista por ter encontrado a paz, a harmonia e o amor há muito almejados. O romancista por ter outras histórias a contar noutros livros. Abramo-los nós leitores e vivamos as suas escritas com todo prazer garantido que as obras do autor nos habituaram a usufruir ou sigamos as sugestões de leitura aí registadas. Fico-me como os versos de Abou-l-Ala, o poeta cego de Maarra, contemporâneo das Cruzadas e crítico acérrimo de todas as verdades impostas pela força na Torah, no Alcorão e nos Envangelhos. Uma boa pesquisa a encetar neste final de férias grandes de verão em que tanto se tem falado de cruzamento de culturas, diálogo de civilizações e tolerância de crenças.      

16 de agosto de 2017

Charles Dumont: Non, je ne regrette rien

TIMBRES CHARLES DUMONT 2013

Rei morto, rei posto...

No dia em que Elvis Presley morreu, encontrava-me de férias em França, numa viagem que me levaria pelos diversos departamentos do antigo Duché de Bretagne. Soube da morte do rei do Rock and roll norte-americano pela rádio. O locutor de serviço lá lhe traçou uma breve resenha biodiscográfica acompanhada de alguns dos temas que o tornaram conhecido em todo o mundo. Na noite desse mesmo 16 de agosto de 1977, ouvi pela primeira vez a voz de Charles Dumont. The king is dead, long live the king.

O verão estava no auge e a estação balnear de La Baule vivia o seu festival anual. Instalara uma tenda de circo no areal da praia da Côte d'Amour. Cenário mais do que adequado para receber o rei da Chanson de Charme francesa. Iniciou o concerto com o Non, je ne regrette rien. Interpretou ao piano a canção que musicara em 1956, com letra de Michel Vaucaire, e que Edith Piaf gravaria em 1960. No dia em que a voz de Elvis Presley se calou, foi-me dado a conhecer a de Charles Dumont. Le roi est mort, vive le roi.

Quando o Pardal de Paris bateu asas e voou para outras paragens, o seu compositor preferido entrou em cena e começou a cantar todas as canções que lhe dedicara. Reinventou-as. Compôs outras. Muitas mais. Deu-lhes vida como poucos o saberiam fazer. Na noite do dia em que Charles Dumont se me revelou a reinterpretar a tal cantiga celebrizada por Edith Piaf, la chanteuse de guinguette et vedette de music-hall, apeteceu-me ouvi-lo de novo ao piano como há quatro décadas. AquiLa reine est morte, vive le roi.

5 de agosto de 2017

Ana Hatherly, o Mestre e a Discípula que andava à procura da Alegria

«O Mestre é um homem que aparece. Está-se sempre a rir e ri de tudo, mas diz: há coisas que a gente não deve querer. Em francês soava melhor: il y a des choses qu'il ne faut pas vouloir. [...] Porém a Discípula não gostava de rir nem tão pouco de chorar e é por isso que andava à procura da Alegria, já que essa devia excluir o riso e o choro.»
Ana Hatherly, O Mestre (1963)
Tenho entre mãos a versão definitiva do texto de estreia de Ana Hatherly na ficção, O Mestre (1963), dado à estampa pela Ulisseia-Babel em 1910. Li-o dum jato. Para trás ficaram os inúmeros prefácios, posfácios e comentários que acompanham esta 5.ª edição da novela. A introdução da autora e as leituras de Maria Alzira Seixo, Silvina Rodrigues Lopes, Simone Pinto Monteiro de Oliveira e José Carlos Barcellos ficaram para o fim. Com todo o respeito que esses nomes mais ou menos sonantes da crítica portuguesa e brasileira me merecem, reservei-me o privilégio de descobrir em primeira mão todos os meandros do relato sem interferências contaminantes de terceiros.

Lido e relido o livro em todas as suas componentes constitutivas, apercebi-me que os mestres d'O Mestre já disseram tudo ou quase tudo sobre as histórias do Mestre e da Discípula. Pouco ou nada terá ficado por dizer. Deixemos essas demonstrações do saber académico nos espaços impressos que lhe foram dedicados. Apetece, em contrapartida, pegar nos considerandos que a criadora disse sobre a obra criada. Ouvi-la através das palavras escritas foi como se a tivesse a ouvir de novo com as palavras ditas no período de tempo em que eu fui o discípulo e ela a mestre. Já me referi a esse momento decisivo da minha formação e fico-me portanto por aí no que ao assunto toca, o de Ana Hatherly entre os mestres...

Diz a mestre de mais duma década ao discípulo de escritas barrocas, de errâncias pícaras e bizantinas, caberem os diálogos-monólogos travados nessa invenção de situações verosímeis na categoria do realismo direto simbólico, centrado na dificuldade da comunicação humana. Afirma tê-lo feito sem recorrer aos expedientes usuais dos relatos surrealistas. Quem sou eu para duvidar. Agrega noutro passo da autointerpretação dos factos narrados tratar-se duma digressão programática pelos meandros do experimentalismo, movimento que dominaria o seu trabalho nas décadas de 60 e 70. Confessa depois, a concluir, entender toda a malha discursiva da fábula como uma máscara de si mesma. Discípula e mestre. Nem mais nem menos.

A voz que obscurece da Autora cala-se e cede a palavra ao Leitor para encontrar a Lição que ilumine os sentidos convocados pela Obra. Descobrir a tal Alegria que a Discípula procurava no Mestre. Só assim se entenderá. Os dez capítulos de fragmentos compostos em dez dias aí estão a desafiar a capacidade interpretativa de todos nós. Em termos pessoais, direi que o Mestre do romance curto ou conto longo não é a mestre que conheci na década de 90. Pelas mesmas razões, o discípulo da vida real não se confunde com a Discípula da vida imaginada nas páginas duma novela de filiação genérica imprecisa. É que os mestres e discípulos da Vida não se podem confundir com os mestres e discípulos dos Livros...

Arcádia (1963); Moraes (1976); Quimera (1995); 7 Letras (2006)