17 de maio de 2024

O status mata-frio do capote alentejano

capote alentejano castanho

Não, não é o capote que tive, usei e perdi nos anos 70, mas não desdenharia que fosse meu. Esta foto saquei-a na Net. Aquele que em tempos vesti novinho em folha foi-se de vez há uma eternidade. Gasto, coçado, puído.

Lembro-me com frequência daquele capote alentejano trazido por mão amiga diretamente de Elvas. Ter-me-á custado a módica quantia de 65$00, uns meros 0,32€ impensáveis nos dias que agora correm a grande velocidade.

Durante dois/três anos letivos, serviu-me de traje académico, numa altura em que a capa e batina estavam tacitamente vedadas em Lisboa. Adaptei-o consoante a necessidade do momento a cobertor, toalha e almofada.

Desisti de adotar um de novo igual ao de então. Nunca vi nenhum aqui por estas bandas meridionais. Pesados, quentes, incómodos. Os modelos das vestimentas atuais seguem outros padrões. Europeus, mundiais, globais.

O status mata-frio do capote afirma que a chuva forte molha o capote e quem anda de capote no verão ou é pobre ou ladrão, i.e, se quem tem capa sempre escapa, então com gabão escapa ou não e com capote escapa a galope.

13 de maio de 2024

Ilustre desconhecido com nome de rua

Arte vintage de soldados de brinquedo

Passei com caráter permanente os primeiros dezoito anos da minha vida na rua Capitão Filipe de Sousa, ilustre desconhecido com nome inscrito na toponímia citadina. Nessas duas décadas incompletas, nunca me questionei quem seria esse oficial. Hoje em dia continuo na mesma. Por mais que o procure no Dr. Google, a situação persiste imutável, sem satisfazer a minha curiosidade tardia. Sem dúvida, alguém importante terá sido, para nomear artéria urbana que à data fazia a ligação Lisboa–Porto.

A rua da minha infância e adolescência foi palco de muitos préstitos solenes da mais diversa ordem. Por ela peregrinavam em datas precisas os fiéis devotos das aparições de Fátima, por ela passavam em alegre parada circense as estrelas maiores e menores do Arriola Paramés, por ela desfilavam em vistoso cortejo cavaleiros, toureiros, peões de brega e forcados das corridas à antiga portuguesa, por ela marchavam os recrutas de RI5 rumo à carreira de tiro situada nas aforas da cidade termal da rainha.

À janela da casa dos meus verdes anos, recordo os romeiros dum santuário mariano estremenho, revejo os elefantes, lantejoulas, palhaços, faz-tudos e festões do maior espetáculo do mundo, relembro os coches de gala a caminho da praça de touros, revivo os passos ritmados dos futuros combatentes das guerras africanas. Na rua com nome dum ilustre desconhecido rememoro os trajetos de aparato que por ali se fizeram só desconheço os percursos de vida do militar que lhe deu nome.

A singularidade de saber o nome e o posto dum ilustre desconhecido remete-me para os efeitos perversos da efemeridade da fama. Igualam a glória do momento de tantos famosos virtuais fabricados pelas redes sociais a usurparem o espaço devido aos notáveis reais atirados para um nimbo forçado. Vivem no reino do império minuto, tão depressa erguido como caído. Estrelas-cadentes fugazes duma noite serena de verão, meteoritos celestiais incendiados em contacto vertiginoso com a atmosfera terrestre.

ADENDA
Afinal as informações sobre o ilustre desconhecido com nome de rua andavam por aí perdidas à espera que alguém as encontrasse e revelasse. Esse alguém é um velho colega/amigo de longa data com residência numa acolhedora Casa da Ginja, que merece a pena visitar frequentemente em formado virtual dum blogue concebido como uma gaveta de memórias.

CABO DA VILA
O Rol dos Confessados, de 1656, fala-se no Cabo da Vila, com 20 fogos e, em 1792, referem a rua que vai para o cabo da Vila, no foro imposto em umas casas e que paga Matias da Silva, desta vila, á confraria do Rosário.
No «Livro do lançamento das décimas do ano económico de 1844 a 1845» é já mencionada a como rua. 
Em 20 de Novembro de 1857 é intimado Ricardo da Silva Ribas a abrir a vala que recebe as águas do agueiro da Júlia, porque deterioram a rua do Cabo da Vila, e em 2 de Dezembro a Câmara deu parte ao engenheiro Mousinho (Luiz da Silva Mousinho de Albuquerque?) da obstrução do Pontão do Cabo da Vila,obrigando as águas a correrem por esta rua e pela do Jardim, danificando-as.
Em 1889 ainda assim é denominada. Na sessão da Câmara compareceu o proprietário Caetano Policarpo, oferecendo-se para calçar o agueiro público [14] que passa junto da sua casa, na rua do Cabo da Vila, «pondo-se assim em estado de asseio a não prejudicar a saúde pública.
A vereação, em sessão de 13 de Maio de 1890, a requerimento de 33 cidadãos, deliberou «que fosse denominada a rua do Cabo da Vila, rua Capitão Felipe de Sousa, perpetuando o nome do valente capitão do exército do Ultramar, Caetano Felipe de Sousa, natural desta vila, que faleceu em acção na Guiné, defendendo, ali os direitos da Nação Portuguesa». [15] 
Rui Forsado, As ruas das Caldas (achegas para uma toponímia caldense).
Caldas da Rainha: Tipografia da Gazeta das Caldas, 1968 (pp. 14-15)

9 de maio de 2024

Cafés e cafetarias na Europa de Steiner

Εὐρώπη | Eúrṓpē

A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da «ideia de Europa».

George Steiner, A Ideia de Europa (2006: 26)

NOTA
A celebrar a Europa no dia que lhe é dedicado

8 de maio de 2024

Escudetes em cruz e besantes em aspa com estrelas de sete pontas aos cantos

Morabitino de Ouro de Dom Sancho I

[Lisboa - Museu da Moeda]

Estalou tempos uma polémica sobre a configuração das quinas na rosa-dos-ventos da Praça do Império em Lisboa. Mais uma a juntar às muitas a que o brasão de armas português anda associado, com direito a validação certificada pelo Polígrafo SIC. Desconheço se o reposicionamento respeitou a cronologia da expansão portuguesa representada no mapa (1418-1525), i.e., com os escudetes laterais e central direitos, com as pontas voltadas para baixo, tal como a heráldica oficial os colocou em 1482-1485, no reinado de D. João II.

Mais recentemente, o Sebastião Bugalho da AD trocou os alhos por bugalhos no discurso de candidatura às eleições para o Parlamento Europeu. Clarificando: contou os sete castelos do escudo português e chamou-lhes quinas. Trocas e baldrocas involuntárias com que se fazem os faits divers mediáticos, as gaffes politiqueiras e os lapsus linguæ discursivos. Mero deslize que nem chega a constituir uma verdadeira polémica digna desse nome. Piada malparida por um jovem comentador televisivo promovido a cabeça-de-lista partidário.

Mitos e contramitos gerados em torno dos símbolos nacionais têm sido recorrentes ao longo dos séculos que inscrevem a sua criação, gestação e fixação atual. As quinas mal contadas pelo aspirante a eurodeputado bem podiam ser nove se nos reportarmos ao brasão atribuído a D. Afonso Henriques e que certamente nunca terá usado na Batalha de Ourique. Os primitivos sinais do rei/reino adotados pela república mais não são do que simples escudetes com um número variável de besantes que o morabitino de D. Sancho I reduz a quatro.

Cinco escudos em cruz e vinte besantes em aspa com quatro estrelas de sete pontas aos cantos assinalam, a ouro, o poder dos Borgonha de cunhar moeda própria. Remontam a uma data incerta próxima da subida ao trono d'O Povoador (1185), cerca de meio século após O Fundador ter terçado armas com as taifas islâmicas do al-Andalus (1139). Sinete pessoal simbólico a afirmar o poder do rei e o prestígio do reino face às demais cabeças coroadas peninsulares, que o devir histórico adaptaria, mutatis mutandi, em emblema nacional do país.

Diz a sabedoria popular que em casa onde não pão todos ralham e ninguém tem razão. por estas bandas de pobretes e alegretes num país à beira-mar plantado, fantasiam-se os momentos de crise com os feitos memoráveis dignos de figurarem para sempre no armorial nacional. Idealiza-se a origem divina da monarquia lusitana com Jesus a coroar o seu primeiro rei e a vencer com a sua égide cinco reis mouros no campo de liça. Cenário milagroso que a atual historiografia afastou de vez, mas o imaginário coletivo teima em repetir e celebrar.

BRASÕES DE DOM AFONSO HENRIQUES

2 de maio de 2024

Olhares do velho sentado no limiar da eternidade olhado por Vincent van Gogh

Vicent van Gogh

Oude man in verdriet - op de drempel van de eeuwigheid  (1890)
[Kröller Müller Museum – Otterlom – Nederland]

EXPRESSIONISMOS OLHADOS E PINTADOS

Olho o «Velho em tristeza no limiar da eternidade» (1890) com o olhar cristalizado, que Vicent van Gogh lhe outorgou a duas dimensões coloridas, nos olhares de quem o olha e é olhado. Olho-o também eu com o olhar emprestado de quem o olhou à distância ou de perto, ao longo dos anos que ali permanece imóvel, sentado à espera que a morte chegue e nunca mais chega. Gloriosa, libertadora, irrepetível.

O velho que é olhado por quem o quer olhar baixa o olhar e não nos quer olhar. Olhar de quem está à espera de partir para outros espaços sem olhares à vista reserva-se o direito de se deixar olhar de olhos tapados. Olha para dentro de si mesmo como ele sabe olhar. Pede a ajuda das mãos. Dedos crispados junto aos olhos selados. Quem o olhar que imagine o que o estará a olhar com um olhar velado.  

Imagino olhá-lo de cabeça levantada e rever o olhar com que o meu avô materno me olharia depois de ter ido ao encontro da eternidade era eu uma criança. Exercício difícil de realizar com o paterno que não cheguei a conhecer. Duro também recriar o olhar do meu pai que não teve tempo de chegar a velho como o velho que olhamos sem ser olhados no Kröller Müller Museum de Otterrlom nos Países Baixos.

Olho e reolho o velho da tela e não me vejo e revejo em tristeza à espera que a morte chegue. Os olhos com que me olho agora são os olhos com que sempre me olhei sem nunca se deixarem olhar olhos nos olhos como se olham os olhos dos outros. Não me quero olhar a ser olhado assim, a imitar os expressionismos olhados e pintados pelo pintor no ano exato em que partiu ao encontro da eternidade.

25 de abril de 2024

Círculos & Espirais

Marie-Pierre Jan, Spirale (2019)
[Artmajeur]
O LIVRO DE MILENE
«Como o próprio tio às vezes dizia, num futuro próximo, a Democracia teria de ser revista.»
Lídia Jorge, O vento assobiando nas gruas (Lx.: Dom Quixote, 2002., xxi, 453)
círculo
Figura plana cuja periferia, circunferência, está toda a igual distância do seu centro.
espiral
Linha curva que, sem se fechar, vai dando voltas em torno de um ponto, afastando-se dele de forma progressiva e regular.
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha]

Deitei-me na noite da viragem de ciclo da ditadura para o da liberdade a ouvir o Rádio Clube Português. Como desliguei o transístor a pilhas  pela 1:00h da manhã, deixei fugir a leitura do primeiro comunicado do MFA às 4:26h, altura em que dormia profundamente o sono dos justos. Nessa mesma noite, passou-me também ao lado a difusão das duas senhas cantadas da revolução: «E depois do adeus», às 22:55h da véspera, pelos Emissores Associados de Lisboa, posto que não costumava sintonizar; e «Grândola, vila morena», às 0:21h da madrugada do 25 de abril, pela Rádio Renascença.

Sobre o que vivenciei nesse dia o relatei aqui. Levantei-me cedo em Campo de Ourique, percorri o Rato e o Príncipe Real a passos largos, atravessei o Bairro Alto de ponta a ponta e adentrei-me em Santa Catarina. Foi aí que as portas se abriram de par em par e me dei conta que a revolução já andava nas ruas em liberdade e de braços abertos. Na madrugada do dia de hoje, ignoro como decorrerá daqui para a frente. Prevejo que algumas vozes dissonantes ecoarão a reclamar por cartilhas antigas que os analistas mediáticos debitarão mesmo de olhos fechados nas próximas semanas.

Uma meia centena de saudosistas empedernidos dos tempos da outra senhora ocuparam vitoriosos as bancadas da Assembleia da República, desejosos de a muito curto prazo restaurarem a antiga Assembleia Nacional de triste memória que tanto custou a derrubar. A alternância dos ciclos políticos são naturais em liberdade, assim a viragem radical de há meio século não corresponda a uma viragem radical de sentido inverso nos nossos dias. Que as sionistrogiras e as dextrogiras periódicas se façam de modo espiralado aberto em tudo contrário ao modo circular fechado e Abril vencerá.

23 de abril de 2024

Sofrimentos, amores desditados e finais felizes dos contos, novelas e romances


No Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor...


   El dentista y el viejo miraban pasar el río sentados sobre bombonas de gas. A ratos intercambiaban la botella de Frontera y fumaban cigarros de hoja dura, de los que no apaga la humedad.
  –¡Caramba!, Antonio José Bolívar, dejaste mudo a su excelencia. No te conocía como detective. Lo humillaste delante de todos, y se lo merece. Espero que algún día los jíbaros le metan un dardo.
  –Lo matará su mujer. Está juntando odio, pero todavía no reúne el suficiente. Eso lleva tiempo.
   –Mira. Con todo el lío del muerto casi lo olvido. Te traje dos libros.
   Al viejo se le encendieron los ojos.
   –¿De amor?
   El dentista asintió.
   Antonio José Bolívar Proaño leía novelas de amor, y en cada uno de sus viajes el dentista le proveía de lectura.
   –¿Son tristes? –preguntaba el viejo.
   –Para llorar a mares –aseguraba el dentista. 
   –¿Con gentes que se aman de veras?
   –Como nadie ha amado jamás.
   –¿Sufren mucho?
   –Casi no pude soportarlo –respondía el dentista.
   Pero el doctor Rubicundo Loachamín no leía las novelas.
  Cuando el viejo le pidió el favor de traerle lectura, indicando muy claramente sus preferencias, sufrimientos, amores desdichados y finales felices, el dentista sintió que se enfrentaba a un encargo difícil de cumplir.
   Pensaba que haría el ridículo entrando a una librería de Guayaquil para pedir: «Déme una novela bien triste, con mucho sufrimiento a causa del amor, y con final feliz». Lo tomarían por un viejo marica, y la solución la encontró de manera inesperada en un burdel del malecón.
   Al dentista le gustaban las negras, primero porque eran capaces de decir palabras que levantaban a un boxeador noqueado, y, segundo, porque no sudaban en la cama.
   Una tarde, mientras retozaba con Josefina, una esmeraldeña de piel tersa como cuero de tambor, vio un lote de libros ordenados encima de la cómoda.
   –¿Tú lees? Preguntó.
   –Sí. Pero despacito –contestó la mujer.
   –¿Y cuáles son los libros que más te gustan?
   –Las novelas de amor –respondió Josefina, agregando los mismos gustos de Antonio José Bolívar.
   A partir de aquella tarde Josefina alternó sus deberes de dama de compañía con los de crítico literario, y cada seis meses seleccionaba las dos novelas que, a su juicio, deparaban mayores sufrimientos, las mismas que más tarde Antonio José Bolívar Proaño leía en la soledad de su choza frente al río Nangaritza.
   El viejo recibió los libros, examinó las tapas y declaró que le gustaban.